Calçando Um Bom par de sapatos e um Caderno de Anotações – ou mais uma razão para vasculhar a obra de Anton Tchékhov

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anotacoes

Eu poderia ter encontrado aquela anotação em qualquer lugar, mas não teria o mesmo efeito. Nada de grandes explicações, embora fosse uma aula; apenas chaves verbais como indicações de um caminho a percorrer, o resto é por conta do andante. No fundo eu não sabia o que esperar.

“Viajar para vencer a preguiça, sem a expectativa de ter de escrever.” (p.21)

Eu estava n’ algum canto daquele largado 2011, em uma sala da Biblioteca Pública do Paraná, junto a sei lá quantos aspirantes a escribas, ou apenas gente combatendo o vazio das horas com um mínimo de atividade mental. Não me recordo de termos obrigação de produzir lauda alguma naquela oficina, e da minha parte foi melhor ter ido sem expectativa de produzir ou escutar algo específico. Apenas li um anúncio – “oficina disso,  tal professor”, e na época (faça de conta que foi 20 anos atrás, por favor) o meu escasso envolvimento com leitura me apresentou a produção do professor, e esta me convenceu de imediato.

“Às vezes, deixar na mão do acaso pode revelar-se útil, principalmente se o lugar é desconhecido” (p.40)

Cada participante ganhou um bloco de papel, desses grandes que se fosse guardado em um bolso de calça jeans uma parte ficaria de fora. Rabisquei uma porcaria qualquer para batizar o presente, mas lembrei de gravar – na mente e no papel – um nome ao qual retornei meses depois daquela aula. Era um livro, um guia sem cara de guia.

“Ter sempre uma caderneta onde anotar dados, observações, modos de dizer, e onde transcrever declarações e eventuais entrevistas” (p.36)

O nome ficou no papel por… algum tempo. Um Bom par de Sapatos e um Caderno de Anotações. Fácil de lembrar, mas claro que o irresponsável aqui não se lembrou de anotar o nome do autor. Mas gravei este nome, e uma das histórias contadas pelo professor.

Uma delas não foi sobre o livro. Foi sobre uma entrevista que o professor fez com uma artista, uma cantora qualquer de nossa música. Foi até o teatro onde ela ia se apresentar, e lá descobriu não ter permissão para falar com a moça – era um pedido dela, não queria ser incomodada antes do show. O docente a viu – só. Faltou a produção (ou equivalente a guardar o sossego da moçoila) olhar para ele, munido do bloco de anotações, e falar ‘se vira!’. E ela, alheia em seu repouso, se ocupava com um cachecol, um enfeite novo, um caderno de palavras cruzadas, ignorando se alguém estivesse ali para a pedir um autógrafo, uma entrevista ou entregar um mimo. Com uma barreira invisível a sua frente, o professor retratou o que viu: a cantora em seus lazeres pré-show.

E não teve problema algum com o silêncio voluntário dela.

Na colcha de retalhos da minha memória esta breve história me leva a outra, mais antiga. Um jornalista dos anos 50-60 queria a todo custo uma entrevista com Frank Sinatra, e nada de um contato face-a-face. Na falta da voz falada do cantor, o jornalista ouviu as das pessoas que conviviam com Sinatra dentro e principalmente fora do palco, e delas criou o próprio recorte, do qual inclusive há um detalhe tão besta quanto importante: Frank Sinatra contraiu um resfriado. Você e eu podemos ficar resfriados, e daí? Mas ele não podia, uma gripe idiota não devia atingir o grande cantor, cuja voz sofria por uma singela sequência de espirros. Esse era o cara por trás do cantor, retratado por Gay Talese.

tchekhov

 “As respostas mais interessantes às vezes podem ser as falsas ou aproximativas, como também a ausência de resposta” (p.98)

“Folhear relatórios, atas oficiais, listas, regulamentos e cartas particulares; deduzir os costumes pelos vetos que os proíbem” (p. 67)

“Viajar a pé, acompanhado, seguindo percursos fora de mão” (p.45)

Volto a falar da oficina. Tinha um nome: Construção do Personagem. É um nome estranho dado a entrevistados e pessoas afins dentro do ramo jornalístico, de quem se alugam minutos e se emprestam palavras para contar uma história. Mera formalidade, como ouvi diversas vezes de muita gente; inclusive o livro do qual retirei as citações foi citado por José Castello, ministrante da oficina, por seu método.

Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações possuí uma galeria de frases e cartas de Anton Tchékhov, e funciona como um making of de sua viagem à Ilha de Sacalina, no final do século XIX. Com a vida pessoal meio embaralhada, alguns contos publicados em periódicos russos e uma parcela de estima de conterrâneos, Tchékhov garimpou informações sobre Sacalina como pôde: encomendava livros e mapas cartográficos a seu editor, pedia cópias manuscritas de trechos de artigos e estudos sobre a Ilha a quem pudesse, sua mente não descansava de Sacalina.

A tal Ilha nada oferecia de paraíso, ainda mais para Tchékhov, que afirmava ir lá atrás de ninharias. Mesmo com suas casas, igrejas e comércios, era basicamente um depósito de presos dos piores crimes, tratados pelo Estado com desprezo. E justo Tchékhov viajar para lá, ele que temia censura em sua produção, vide um conto onde metade dos personagens se diz descrente de Deus, outro onde há um condenado a trabalhos forçados, um policial que detestava a farda, não aparentava ser alguém tão preocupado com as normas vigentes, fossem elas o mais próximo de uma censura, do ‘politicamente correto’ de nossa época ou mero pudor de como se retrata um povo.

Tchékhov catalogava todas as informações de Sacalina, desde as coletadas antes da viagem às oficiais (e não-oficiais, talvez mais valiosas), desde censos a anotações mentais decorrentes de conversas triviais – uma pescaria lhe bastava de aprendizado. Mas segundo o próprio, como descrito em um posfácio neste livro, o escrito sobre Sacalina demorou para acontecer.

“Como explicou a [seu editor Aleksei] Suvórin, por muito tempo parecia querer pontificar sobre o assunto, e ao mesmo tempo esconder algo. ‘Porém logo que me pus a descrever o quão estranho eu me sentia em Sacalina e que porcalhões vivem ali, a coisa ficou mais fácil e o trabalho entrou em ponto de ebulição’ ” (p.158)

caderno_tchkhovNão por acaso, entre os ‘conselhos’ de Anton Tchékhov estão os de se inserir na cena, não disfarçar as próprias emoções diante do presenciado e “Estar preparado para rever opiniões baseadas em leituras e expectativas” (p.37), esta última frase antecedida por ‘Disponibilidade para mudar de ideia’. O making of desta narrativa, do qual eu soube pela oficina ministrada por José Castello, funciona como guia sem ter cara de guia porque não há uma sensação de ‘aprenda a escrever comigo e siga essas regras’, mas sim pelo casamento de pesquisa, exploração e sinceridade dela. Preenchido com cartas do autor a seus editores e trechos da narrativa-tema, Um Bom par de Sapatos e um Caderno de Anotações revela um autor tão humano quanto os personagens que demorou para conhecer e retratar, como se não houvesse distância entre eles, a despeito dos cenários apontarem caminhos obscuros. Não se trata de santificar ou demonizar um lado (ao menos para mim, Tchékhov em momento algum quer salvar ou condenar alguém), seja autor, país ou os condenados; mas de calçar o Par de Sapatos e relatar além do que se vê. Será necessário.

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