Calvino, Manguel e Pamuk – Que leitores somos?

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Leio, logo escrevo.

 Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno

 Todos somos leitores. Lemos desde os princípio de nossas vidas. Antes de aprendermos a ler, liam para nós. Para nos entreter ou ainda para que pudéssemos dormir. A leitura era então nosso convite para um mundo de possibilidade e sonhos. Depois tornamo-nos leitores independentes. Escolhemos nossas leituras, nossas predileções, nossas formas de ler. O leitor é um conjunto de escolhas que se estende desde o que é lido, até o modo como lê. Por ser o leitor, o mediador entre o mundo ficcional e o mundo real que sua figura seja tão interessante. Nos preocupamos com seu conforto e ambições emotivas e estéticas.  Algumas obras literárias são marcadas pela presença do leitor e pelo diálogo que o narrador estabelece com ele.

Se um viajante numa noite de inverno de Ítalo Calvino começa de uma forma singular. O primeiro capítulo é um diálogo com o leitor, a quem ele denomina “você”. Nesse início, o narrador coloca algumas condições de leitura, as quais julga essenciais para o ato da leitura. Silêncio, comodidade, conforto e o desejo.

Há indivíduos que conseguem ler na fila do banco, no coletivo, na praça, com todos os sons possíveis em torno. Outros, e podem até serem os mesmos, leem em qualquer posição, seja deitados, de pé, sentados ou em exercício (há quem frequente academias com livros que são colocados bem à frente na bicicleta ergométrica ou esteira). Tudo isso está ligado ao conforto, que é entendido como a forma mais adequada a cada um de sentir-se bem.  O narrador de Se um viajante numa noite de inverno comenta que o bom mesmo são os pés para cima…

Mas o que importa mesmo de todos os elementos é o desejo. É ele que move o leitor a procurar o livro e encontrá-lo. O modo de leitura é outro assunto. Um é expectativa de alma, de intelecto, o outro são condições físicas e de comportamento. O desejo é mais do que tudo isso.

É o desejo que configura o leitor, predispõe e particulariza cada sujeito sobre a leitura. Leio por que quero, leio por que preciso comunicar-me com o mundo da arte, mas também fruir o mundo real através das palavras de outro.

Alberto Manguel, em À mesa com o chapeleiro maluco – ensaios sobre corvos e escrivaninhas, dedica um ensaio ao leitor. No texto, ele descreve o que para ele compõe um “leitor ideal”.  O leitor ideal precede o texto, é para ele que o autor escreve, não para si mesmo. O texto se desenvolve, se mostra ao mundo através da leitura de um indivíduo. O leitor se envolve pelo texto, deixa-se arrebatar pelo que ele significa como conteúdo e como arte.

Não existe o texto sem o leitor. A literatura é um sistema, três elementos o compõem: autor (o que emite, o que gera o texto), a obra (o objeto estético) e o leitor (que completa e finaliza o objeto). O leitor então valida o texto como arte. Daí termos tantas teorias sobre o leitor, sobre a capacidade de preenchimento do texto, dos vazios de indeterminação de sentido, de horizontes de expectativas e estratégias colocadas pelo autor.

E cada leitor reage e entende o texto de uma forma. É o desejo que se completa pela satisfação da leitura, pelo que ela oferece como possibilidade de mundo e de fruição. Lembro-me sempre de leitores que ficaram na história da literatura, imortalizados em palavras, personagens que assumem o que o leitor é para o autor: Dom Quixote, Paolo, Francesca e Emma Bovary. São personagens a quem a literatura foi mais que desejo, tornou-se ambição de realidade. Envolvidos pelas histórias lidas, contemplados pelas fábulas que destoavam do mundo real, concedendo-lhes graça e sonho, abateram-se pela arte, tentando transformá-la em cotidiano, em real.

Essa percepção de literatura como desejo e abstração, além da fruição e da leitura como entendimento do estético, faz-me pensar noutro autor que escreve sobre a arte do romance. Orhan Pamuk escreve sobre o romancista e os modos como o escritor se relaciona com o mundo a ser descrito e como esse sujeito se relaciona com o que escreve. Assim ele diferencia o romancista ingênuo que é aquele que coloca no texto suas emoções ainda puras, sem tratamento, expondo ao mundo, suas dores e opiniões como forma de catarse. Também esse jogo de sensações e identificações promove a tentativa de encontro com o próprio mundo. Esse escritor escreve para si. O texto é o depósito de todas as suas expectativas, sonhos, possibilidades.

Por sua vez, o romancista sentimental é aquele que filtra o mundo através de sua escrita. Ele já não se entrega à arte como abatimento e sim como esquema de representação. O romancista sentimental escolhe o que narrar e escolhe a melhor forma de fazê-lo. Como arte que é, a literatura passa por processos de depuração, de aprimoramento. Esse romancista sabe como realizar isso. O leitor não é apenas o ouvinte ideal, ele é o decifrador de um código pessoal e ao mesmo tempo universal.

Essas duas formas de romancistas podem também servir de molde ou ainda “base” para formas de se pensar o leitor. O leitor ingênuo, aquele que se move pelo desejo da leitura, pela fruição do que existe no texto, lendo apenas o que a imaginação promove e pensando na arte como uma forma de fuga, ou de leitura de mundo que inspira e dissolve-se no âmbito do imaginário. Esse leitor se emociona, deixa-se tomar pela leitura como um sopro de deuses. Entristece-se com os destinos das personagens, ama quando amam, cuida para que a personagem cure-se de uma doença e deseja-lhe o melhor dos finais. Ele eterniza a vida da personagem. Incorpora esse seres, ficcionais, ao seu mundo real.

O leitor sentimental é aquele que percebe além do ombro da personagem. Ele circula pela narrativa como um observador atento. Entende os esquemas, os arquétipos, as mitologias e o sentido daquele texto como princípio estético. Ele valida o texto como arte e como organização. O leitor sentimental já não se deixa comover pela personagem, mas atêm-se as formas escolhidas pelo autor para contar essa história. É a trama e não a fábula que o move. Ele percebe como essa figura se desloca no mundo narrativo. Analogias, comparações, verossimilhanças, todas essas particularidades interessam ao leitor sentimental.

Ambos, apesar de suas diferenças, das significativas formas de ver o mundo ficcional e o que dele se abstrai, compartilham de um mesmo fator: o desejo. É o desejo de estar na leitura, de participar do universo mimético. É esse sentimento que move o leitor até a estante, até a livraria ou biblioteca. É o desejo que faz com que ele escolha determinada obra, que invista seu tempo na leitura. O certo é que esses leitores, ingênuos ou sentimentais (e talvez ainda um híbrido dos dois, que reúna fruição e análise) são os leitores ideais. Eles justificam a literatura.

Imagem: Petit Four Thought

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