Com um tapa-olho que limitava sua visão da praia, o homem sentou-se na areia macia e, encarando o mar, libertou um suspiro rouco de saudade. Pouco sabiam sobre sua vida e o que sabiam era, em sua maioria, especulação. Era certo que se tratava de um homem culto: dominava o latim e as muitas histórias que circundavam o mundo – detalhes que serviram de passaporte para que pudesse frequentar a corte. Autoexilou-se por conta de amores frustrados e participou de uma batalha que o deixou caolho, privando-o de enxergar a vida em sua totalidade. “Ah minha Dinamene! Assim deixaste/ Quem não deixara nunca de querer-te!”. Sentia falta dela, mas se pudesse voltar no tempo, teria feito tudo da mesma maneira. Seu caminho o levara até ali, e mal sabia ele que, através de sua escolha, iria não somente imortalizar seu nome na literatura, como também iria imortalizar a própria literatura portuguesa. Escolhas – sempre nos empurrando por esse extenso mar da existência.
Se você tivesse que escolher entre sua grandiosa obra e o amor de sua vida, quem você escolheria?
Recentemente fiz um trabalho sobre a obra que basicamente consolidou a literatura portuguesa – Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. De fato, não é uma leitura simples. Afinal, trata-se de um poema épico de 8.816 versos decassílabos (versos com dez sílabas poéticas) heroicos (a 6ª e a 10ª sílaba poética são tônicas) e sáficos (a 4ª, a 8ª e a 10ª sílaba poética são tônicas), nada mais, nada menos que 1.102 estrofes em oitava rima (rimas que seguem a lógica ABABABCC, ou seja, alternadas nos seis primeiros versos e paralelas nos dois últimos). Talvez você se pergunte o motivo de eu expor tantos detalhes sobre a forma d’Os Lusíadas – você, leitor, deve entender que não foi nada fácil para Camões escrever uma obra rica em forma e conteúdo. Agora, por que você deve entender isso? Para que você possa enfim entender a escolha que ele fez.
Havia uma jovem chinesa chamada Tin Nam Men, a doce Dinamene, por quem Camões se apaixonou. A lenda diz que numa viagem marítima, foram pegos por uma forte tempestade que fez afundar o navio. Em meio às ondas furiosas, Camões viu de um lado a amada se debatendo e de outro, a obra a qual se dedicara meses a fio. Já que hoje temos Os Lusíadas em mãos, não preciso dizer quem Camões decidiu salvar. Acredito que tenha sido uma das escolhas mais difíceis de sua vida.
Porém, um dos fatores mais apaixonantes da literatura, é a sua capacidade de eternizar sentimentos, pensamentos e acontecimentos. Os versos que o poeta lusitano escreveu posteriormente para eternizar sua amada chinesinha, são considerados o ponto de partida para a questão da ausência e presença do amor, assunto sobre o qual tantos outros escritores discorreriam mais tarde.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
A Rainha do Fado, Amália Rodrigues, considerada uma das cantoras mais brilhantes do século 20, interpretou os versos de Camões, na música de Carlos Gonçalves:
Há um retrato puro desse tal sentimento chamado amor entre as linhas do soneto acima. Aproximando-se do modelo de Petrarca, “Quest anima gentil che si diparte / Anzi tempo chiamata a l’altra vita.”, Camões expressa sua dor em relação a perda da amada que havia partido e repousava no céu, num assento divino. Essa colocação nos remete a idealização do amor, a uma espécie de elevação, amor que apenas na morte poderia enfim se concretizar – um exemplo clássico que me veio em mente é Catherine e Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes. No entanto, algo que vale ser destacado, é que Camões expressa seu amor de uma maneira contida e não da maneira louca que o Romantismo explicitaria séculos mais tarde – para ele, o amor se enquadrava nos moldes de Platão, um amor mais espiritual, que só valia a pena se fosse complexo e por vezes contraditório.
Há várias hipóteses sobre Dinamene que circulam pela internet (obrigada, Letícia Feres, por reuni-las) – algumas relevantes, outras incrivelmente absurdas! A primeira é a de que ela nunca existiu, e particularmente, isso estraga tudo, pois todo escritor precisa ter um “drama” na vida. A segunda, aceitável, é a de que Dinamene foi engolida pelas águas antes que Camões pudesse salvá-la. A terceira, um tanto esquisita, é a de que Camões errou o “cálculo” para chegar até a amada, já que era caolho e não enxergava a direção exata em que nadava. Uma quarta hipótese, e essa me perturba e ao mesmo tempo me fascina, é a de que Dinamene aproveitou o naufrágio para dar um fim ao sofrimento que vinha enfrentando ao lado de Camões – afinal, ele só se importava mesmo com seus malditos versos. A quinta, que me fez rir, foi a de que Dinamene nadou até a cidade perdida de Atlântida e nunca mais ouviu uma palavra da “última flor do Lácio, inculta e bela”. A sexta, a mais absurda de todas, alega que Camões era realmente um imbecil com toda aquela devoção patética ao rei, e por isso, Dinamene nadou (!) até a África, onde foi recebida como uma deusa e passou a sabotar expedições portuguesas. A sétima hipótese é a de que Os Lusíadas se salvaram sozinhos – afinal, não se trata da viagem de Vasco da Gama, um importante navegador? E por fim, a última hipótese, a de que mais duvido, diz que Camões carregava Os Lusíadas gravados em si – claro, ele decorou todos os 8.816 versos, muito fácil!
Na tentativa de evitar qualquer espécie de julgamento, seja qual for a verdadeira história que norteia a trajetória de Dinamene, uma coisa é certa: Camões não deixou de salvar o amor da sua vida. Ele apenas salvou aquilo que, para ele, era realmente o amor da sua vida… sua obra.