Acho que a maioria das pessoas que gostam muito de literatura, música, cinema e coisas do tipo, têm os livros, discos e filmes que sonham ver um dia materializados: um “Poesia completa” do poeta preferido, um disco novo com a reunião da banda que se separou, etc. Eu tenho vários desses pequenos sonhos de consumo e, para minha alegria, alguns deles foram enca[de]rnados nos últimos tempos. O mais recente a me atingir na livraria com a sensação de “minhas preces foram atendidas!” foi o livro Aldir Blanc: Resposta ao tempo (Casa da Palavra, 2013), que reúne em um único volume – organizado por Luiz Fernando Vianna – as letras e uma pequena biografia desse que é um dos meus heróis.
Letras de música ocupam um lugar estranho nas atividades artísticas. Talvez fosse mais adequado dizer que não têm um lugar só seu. É preciso lembrar que na construção desse “lugar” são fundamentais o papel da crítica e da recepção pública, e as letras de música, nesse sentido, parecem permanecer em um limbo: inseridas no meio musical, não têm uma fortuna crítica que as observe atentamente dentre o universo das melodias, ritmos e timbres; como forma de criação textual, parecem não alcançar o status de objeto de estudo literário constante. Talvez alguém até já esteja estranhando o fato de uma coluna de um site literário falar de letras de canções. Em minha defesa, proclamo que o lançamento de sua publicação em livro me justifica em alguma instância – se é que num país de Aldir Blanc, Noel Rosa, Chico Buarque e Caetano Veloso, ainda precisamos de alguma justificativa para se debruçar sobre o trabalho dos letristas.
Claro que as letras sempre possuem mais sentido dentro da canção, mas ler o texto de um craque como Aldir é sempre uma boa experiência. Aqui é bom apontarmos aquele equívoco comum: não existe essa coisa de “uma letra de música tão boa que é um poema”. Estamos falando de áreas diferentes, não graus de uma escala quantitativa. Letras e poemas podem ser bons e ruins – não há uma correlação – assim como uma peça de teatro não pode ser “tão boa que é um filme”. São “plataformas” distintas (para usar um termo moderno), com recursos, tensões estéticas e históricas particulares. Escrever, hoje, uma letra com versos alexandrinos pode ser apenas respeitar a prosódia da melodia; em um poema isso poderia ser elemento formador do discurso em si, ou a representação de uma postura. Além disso, a letra tem como recurso as relações que estabelece com a música da qual faz parte: um exemplo é o contraponto de Sinal fechado, de Paulinho da Viola, na qual a música dramática e o texto de um diálogo cotidiano estabelecem um sentido além do de cada um deles em separado.
Voltando ao Aldir Blanc, nosso tema central: sei que muitos não gostam do termo “influência”, mas ele foi decididamente um dos autores com quem mais aprendi a mexer com as palavras. Vindo da música, foi inevitável para mim passar pela escola dos grandes letristas brasileiros. No trabalho de Aldir é possível ver drama e humor, aliados de uma forma que nunca encontrei em outro autor: com pleno domínio dos dois, Aldir transita e mescla ambos com matizes únicas. Além disso, seus retratos do cotidiano, suas construções míticas de pequenos eventos, e sua habilidade em conjugar palavras com tanto valor plástico e expressivo são lições de escrita e sensibilidade.
Sei que retirar trechos de seu contexto completo sempre é uma forma de empobrecimento, mas achei que colocar algumas amostras aqui do trabalho de Aldir seria muito oportuno. Claro que eu sugiro a leitura dessas letras completas (e de tantas outras, como O cavaleiro e os moinhos; Tiro de misericórdia; De frente pro crime; Age, Maria, Bodas de prata, etc…) e mesmo do livro; mas por ora deixo aqui um ponto de partida. Boa leitura dessas canções!
Na primeira febre a minha febre
e quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
e é meu avô estendendo a mão.
(Acalanto para os netos)
As coisas que eu sei de mim
tentam vencer a distância
e é como se aguardassem
feridas numa ambulância.
As pobres coisas que eu sei
podem morrer, mas espero,
como se houvesse um sinal
sem sair do amarelo…
(Transversal do tempo)
Foi, quem sabe, esse disco
Esse risco de sombra em teus cílios
Foi ou não meu poema no chão
Ou talvez nossos filhos
As sandálias de saltos tão altos
O relógio batendo, o sol posto, o relógio
As sandálias, e eu batendo em teu rosto
E a queda dos saltos tão altos
Sobre os nossos filhos
Com um raio de sangue no chão
Do risco em teus cílios
Foram discos demais, desculpas demais.
(Altos e baixos)
O amor
é um mascarado:
a patada da fera
na cara do domador.
O amor
sempre foi o causador
da queda da trapezista
pelo motociclista
do globo da morte.
(Falso brilhante)
Perder um amigo
perder o encontro
marcado e marcar-se
com a perda do espelho
nos olhos do amigo
onde melhor
conheci minha face.
(Perder um amigo)