Caçando Carneiros, de Haruki Murakami, e a nossa realidade

Levantar da cama, tomar café, atrasar-se para o trabalho, trabalhar inertemente, voltar para casa, jantar, assistir ao jornal, reclamar das notícias, cansar-se do dia, dormir. Com uma variação ou outra em dias de academia, é este o exemplo mais básico de um dia de semana no cotidiano do cidadão do século 21. E apesar de nos mantermos a maior parte do tempo encaixados em rotinas sonolentas e repetitivas, alegamos incansavelmente estarmos à procura de algo.
Se considerarmos a exaustiva busca do protagonista de Caçando Carneiros de uma ótica comparativa com a realidade atual, nada se encaixa melhor como correspondência dessa nossa diária – e igualmente exaustiva – busca por… sabe-se lá o que. Transfiguradas em um carneiro com estrela nas costas, nossas ânsias futuras ganham, no romance japonês, uma materialidade ficcional tão distante e abstrata quanto a que encaramos na realidade. Rotinas extremamente regulares, falta de exercício do senso crítico, ações sucessórias sem qualquer objetivo aparente. Tudo isso conscientemente, alegamos, e em prol da busca pela felicidade, por nossos sonhos, pela paz de espírito, chame como quiser.
Não estou tentando generalizar a emoções modernas, muito menos condenar a busca por nossos anseios, apenas chama a atenção sua assustadora semelhança com a caçada pelos carneiros diabólicos de Harumi Murakami. Não vem ao caso o enredo, seu desenrolar e desfecho, o que importa é a enorme sensação de impotência abafada tão bem capturada por Murakami. Em tese, trabalhamos todos os dias em busca de determinado ideal, objetivo; na maioria das vezes com uma alienada convicção de que cada pequena atitude conta, e de que basta insistir na inércia das ações repetidas para fazer toda a espera valer a pena.
Entretanto, assim como os personagens de papel e tinta, nós, seres humanos de carne e osso, acabamos extravasando esse calmo e infalível trajeto ao sucesso com nossas emoções – mais uma vez, de forma inútil. Abafados diariamente por essa rotina constante, em determinados momentos nossos sentimentos e emoções – muitas vezes os mais feios – acabam achando, ou criando, válvulas de escape. E mesmo com os acessos de raiva, crises de identidade, noitadas frouxas e acessos de choro, continuamos a nos encontrar apenas com nós mesmos no dia seguinte, para viver o dia anterior mais uma vez.
E nada mais.
Talvez um pouco mais satisfeitos com nós mesmos, graças à morna demonstração de rebeldia frente a nossa própria condição. Acabamos por nos recompensar, ao final dos dias mais “bem sucedidos”, com uma boa xícara de café, taça de vinho ou qualquer outro prazer mundano – igualmente insignificante.
A caçada ao carneiro de estrela nas costas se revela insignificante, tanto quanto infindável, pois sempre haverá um milionário excêntrico, criado por nós mesmos, para nos jogar em nova busca alucinante por, novamente, sabe-se lá o quê. A cada final de ciclo nos encontramos com os amigáveis fantasmas de nossos desejos e esperanças passados – que se declaram realmente mortos -, e limpamos nossas consciências, pois estamos fazendo o melhor que podemos, nos permitindo assim descansar com um breve alívio de todo aquele abafamento. Mesmo com todo o show promovido por nós, para nós, o final acaba sendo um despertar renovado e rendido a reiniciar o ciclo.