Cartógrafo de Dunas é uma obra de poderosa carga estética, com ousados recursos trabalhados com surpreendentes inteligência e destreza.
“Poesia. Porque a vida não é um mar de prosas.”
Não consegui encontrar um melhor começo para a presente resenha do que o oásis acima (leia o livro e entenderá a referência).
A poesia contemporânea por vezes parece aquela roupa nova feita pelo falso alfaiate, e seus apreciadores, os súditos que têm receio de dizer que o rei está nu. Mas sempre aparecem alguns tecelões de verdade para não deixar o imperador morrer de frio. Arzírio Cardoso é um deles.
Sobre a obra Cartógrafo de Dunas
Cartógrafo de Dunas é um livro como poucos, em que cada peça tem seu lugar, urdido claramente com bastante cuidado e com um plano bem predefinido. Percebemos desde as primeiras páginas – aliás, já desde o título – que o autor sabe exatamente o que está fazendo e como fazê-lo. A mim pelo menos é reconfortante encontrar um escritor em que se pode confiar com razoável tranquilidade que, se não há uma vírgula aqui ou aquela letra ali está trocada, não é por acaso. Principalmente na poesia.
Valendo-se de poucos recursos, tais como aliterações, trocadilhos e jogos de palavras vários, neologismos, algumas rimas, aliados a um alto domínio técnico e um lirismo bem particular, Arzírio, em seu segundo livro publicado, faz jus ao título de Poeta. As dunas do tempo e da vida, apesar de movediças, são belamente mapeadas nesses poemas que se alternam e deslizam constantes, entrelaçando-se e fundindo-se ao sabor de um vento soprado por uma boca onipresente.
Apesar da forte e impressionante unidade do conjunto, os poemas do Cartógrafo poderiam ser lidos na ordem que o leitor quisesse, sem que com isso perdessem sua potência e grande carga estética.
A cada página, uma surpresa
Cartografia das mutações IV
Algo deu errado no milagre
Transformaram o meu vinho
Em vinagre.
Eu literalmente abri o livro a esmo neste exato momento e me deparei com a pérola transcrita acima.
Com um formato atraente e ousado ao mesmo tempo (repare só na numeração das páginas e dos poemas, além de algumas referências ocultas), a poesia nesses diversos versos “brinca” com o leitor, muitas vezes com um ludismo cativante, mesmo ao abordar temas espinhosos como política e injustiças sociais.
Só me resta uma coisa a dizer: perca-se nesses mapas. Em suma, suma.