CEM ANOS DE CLARICE: “Amor Imorredouro”

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CEM ANOS DE CLARICE: “Amor Imorredouro”

Uma coluna para comemorar os cem anos de Clarice. 

Cem anos de Clarice

Esta coluna é parte das celebrações promovidas pelo Homo Literatus do centenário de nascimento de Clarice Lispector, comemorado em 2020.

Dividida em duas séries, “A força da obra” e “O mistério da vida”, assinadas por dois colaboradores do HL, a Carolina Próspero Graziano e o Danilo Passos, ambos apaixonados pela diva recifense.

A cada texto, partiremos de uma emoção explorada pela autora em alguma de suas obras – como o medo, a raiva, o amor –, estabelecendo paralelos entre o sentimento em questão, sua obra e sua vida.

Amor imorredouro

Nosso primeiro texto comentado, “Amor imorredouro”, foi publicado originalmente em 9 de setembro de 1967 no Jornal do Brasil. Ainda era o início de uma parceria entre a autora e o periódico que duraria até o ano de 1973, atualmente compõe o livro “A descoberta do mundo“. O tema central dessa crônica, visto com um bom humor talvez surpreendente para alguns leitores de Clarice, é o amor.

No início do texto, entretanto, a autora se permite um movimento reflexivo sobre o próprio ofício de cronista e, por tabela, de escritora:

Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma.

Percebe-se existir um movimento de insegurança da autora ao assinar uma coluna com seu próprio nome. Um medo da “personalização”2, conforme pontua a professora Nádia Gotlib.

Clarice alude a seus trabalhos prévios na imprensa: está falando das colunas femininas que escreveu sob pseudônimos, entre os anos de 1952 e 1961. Convidada pelo amigo e cronista Rubem Braga para uma coluna dirigida a mulheres na revista Comício, a autora só aceita a função pela primeira vez quando recebe aval para publicar com outro nome.

Já respeitada no meio literário com sua prosa profunda e bem cuidada, parece envergonhar-se de escrever em espaços reservados a dicas de maquiagem, relacionamentos e vida doméstica.

Estando por trás de uma máscara, o trabalho certamente lhe parece mais profissional e distanciado do que acredita ser a sua verdadeira persona, a sua verdadeira “alma”, conforme coloca no trecho acima.

Clarice cronista

A coluna do Jornal do Brasil é a primeira (e única, em toda a carreira) em que assina crônicas como Clarice Lispector e, portanto, não à toa parece a ela mais invasiva e íntima.

O receio inicial arrefece, em alguma medida, com o tempo: sabe-se que Clarice passou a apreciar muito a maior parte do retorno que tinha dos leitores do jornal; sua posição no veículo fez dela uma escritora mais acessível e conhecida do grande público.

A autora conclui o debate inicial do texto aceitando, ao menos parcialmente, a natureza do encargo:

“Vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma – a parte de conversa de sábado”.

E segue para novo problema, sugerindo certa modéstia que, seguramente, faz parte de seu jogo literário: “Só que, sendo neófita, ainda me atrapalho com a escolha dos assuntos”.

Relata uma conversa entre amigos a fim de explicar a conclusão a que chega: o tema favorito das mulheres seriam os homens, e dos homens, as mulheres. “E de vez em quando é bom lembrarmo-nos dessa verdade óbvia, por mais encabulante que seja”.

A graça com que faz essa revelação tem tom leve, quase desculpando o leitor por seu interesse mundano no sexo oposto, o que não só gera uma intimidade imediata com a cronista, como também a aproxima muito da cumplicidade característica dos textos das colunas femininas que Clarice, em momentos passados, não aceitou assinar.

O motorista do táxi

Após um parágrafo inteiro em que brinca com a dualidade com que mulher e homem se relacionam (“Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não.”), ela procede a uma história de seu cotidiano – coisa de cronista experiente, Clarice, a quem você quer enganar? Fala do motorista de um táxi que pegou, “um espanhol ainda bem moço, de bigodinho e olhar triste”.

Este lhe conta da grande paixão que teve, uma moça que, gravemente doente e sem recursos, morreu em seus braços. Teria ficado traumatizado, sem conseguir sair com qualquer outra.

A autora, então, constrói um bonito movimento de identificação que, à moda clariciana, demonstra atração e pavor ao mesmo tempo:

“O ambiente todo lembrava-lhe Clarita – este é o nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e senti-me morta e amada”.

Eventos como esses, que despertam reações conflituosas, são encontrados em muitos de seus contos e romances.

Segundo Nádia Gotlib, em “Amor”, a protagonista Ana se desestrutura após ver um cego mascando chiclete na rua e vai parar no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que lhe parece todo diferente, após o seu despertar. As nuances da sua surpresa são condensadas na seguinte impressão: “O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno”.

De volta ao texto: o taxista relata que teria deixado a Espanha, construído a vida no Brasil e que

“a saudade diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue ter casos e variar de mulheres. Mas amar – nunca mais”.

A guinada do teor romântico para o sensual, um pouco inesperada, continua agora em direção à própria passageira: ao ouvir dela que gostaria de descansar numa casa com cachoeira como a que alega que tinha, convida-a sem cerimônia.

Acuada, a cronista-personagem diz, para a diversão do público diante do desespero de uma mentira mal inventada: “que não podia porque ia me operar e ‘ficar muito doente'(!)”. E, em procedimento típico do gênero, tira uma lição da experiência, que busca compartilhar com os leitores: “Dagora em diante só entrevistarei os choferes bem velhinhos”.

Os jogos clariceanos

Clarice joga com as convenções desse tipo de historieta romântica, admitindo que percebe a desilusão contida nesse final:

“Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a sua vida. A história ficaria melhor”.

Mas emenda, sustentando mais uma vez a ideia de que aquele espaço, assinado, é pessoal e espelha, de fato, a sua vida: “Mas é que não posso mentir para agradar vocês”.

Termina trazendo o leitor sonhador para o plano terrestre, cotidiano, natureza própria da crônica, ironizando a suposta beleza de um “amor imorredouro”, que escraviza o sujeito em um ideal impossível:

“E além do mais acho justo que a vida dele não fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar ninguém mais”.

Seria essa conclusão influenciada pela própria vida da autora, que se separou do marido em 1959 e jamais se casou novamente?

Que visão teve a Clarice da vida real sobre o amor? Sobre essas questões, claro, só podemos imaginar, embora existam comentários e resquícios aqui e acolá. Mas é melhor que fiquemos com o bom humor desta primeira crônica e com a lição de que um “amor imorredouro”, por mais poético que seja, não precisa guiar todo o resto.

Referências

GOTLIB, Nádia. Clarice, uma vida que se conta. 7a ed. São Paulo: Edusp, 2013.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

_________________ Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

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