
Uma crônica da diva Clarice Lispector que perscruta os nuances do olhar feminino sobre a relação com o sexo oposto
Cem anos de Clarice
Esta coluna é parte das celebrações do centenário de nascimento de Clarice Lispector em 2020, promovidas pelo Homo Literatus. A cada texto, partiremos de uma emoção explorada pela autora em alguma de suas crônicas – como o medo, a raiva, o amor – estabelecendo paralelos entre o sentimento em questão, sua obra e sua vida.
Um olhar ancestral
O texto “A favor do medo”1 foi publicado em 11 de novembro de 1967 no Jornal do Brasil. A frutífera parceria entre a autora e o periódico duraria até o ano de 1973. O tema central desta crônica, novamente analisado com bom-humor pela autora, é o medo. Mas que tipo de medo?
O primeiro parágrafo anuncia o recorte sob o qual a ideia vai ser explorada. Diz a narradora:
“Estou certa de que através da idade da pedra fui extremamente maltratada pelo amor de algum homem. Data desse tempo um pavor que é secreto”.
A referência à “idade da pedra” busca trazer a ideia de uma experiência ancestral, de um sentimento que, de alguma forma, teria ficado impresso no corpo das futuras gerações. Ela aparece em outros textos de Lispector, como em A paixão segundo G.H.2:
“Eu era talvez a primeira pessoa a pisar naquele castelo no ar. Há cinco milhões de anos talvez o último troglodita tivesse olhado deste mesmo ponto, onde outrora devia ter existido uma montanha.
E que depois, erosada, se tornara uma área vazia onde depois de novo se tinham erguido as cidades que por sua vez se tinham erosado. Hoje o chão é amplamente povoado por várias raças”
O olhar para o ancestral chama a atenção para elementos da constituição humana que seriam frutos de sua natureza mais animal, abordagem frequente na obra da autora.
Esse amor dos homens
O que se segue traz uma pista do que seria esse elemento: a narradora afirma que teria sido “extremamente maltratada pelo amor de algum homem”.
Obviamente, a relação entre os sexos, na idade da pedra, não envolve a narradora, e sim outras mulheres que a precederam. Podemos notar, dessa maneira, que o texto pretende abordar a tensão (histórica? biológica?) que existe entre homens e mulheres – com sentimentos que oscilam do amor ao pavor.
Sua fala, então, passa a delinear uma situação de serenidade: “estava eu (…) posta em sossego e comendo umas goiabinhas”. A goiabinha: um ícone divertido do cotidiano, tranquiliza o leitor. É que oferece certa sensação de segurança a respeito do homem com quem ela conversava naquela noite: “um cavalheiro que era civilizado, de terno escuro e unhas corretas”. Quem suspeitaria de tal figura, afinal?
“Vamos dar um passeíto?”
O sinal de alarme vem com o convite que ouve do senhor galante: “Vamos dar um passeíto?”. O termo diminutivo, a princípio tão simpático, curiosamente não lhe parece sedutor: “não sei que elemento de terror existirá na delicadeza monstruosa da palavra passeíto”. Em tom bem-humorado, faz graça com a temporalidade histórica e seu receio: “quem já me levou na idade da pedra para um passeíto do qual nunca mais voltei porque lá morando fiquei?”.
Notamos, assim, uma reflexão sutil a respeito de um medo que é próprio das mulheres – de agora e de outrora.
Por trás do pânico brincalhão da narradora, que compara a sua aventura à da Chapeuzinho, surge uma crítica à histórica violência (sexual ou não) sofrida pelas mulheres por parte de homens “enamorados” (não nos esqueçamos de que o texto menciona a paradoxal expressão “maltratada pelo amor”).
Quem sabe qual seria o estopim do perigo? A negativa a um avanço, talvez? A narradora clariciana não o define. Mas sua angústia com o convite decerto indica, como cantaria Elis Regina, que “há perigo na esquina”.
Uma temática insistente
O conto “A língua do ‘p’”, integrante do polêmico volume A via crucis do corpo3, é exemplo do interesse que este tema desperta na autora, aparecendo também em sua ficção.
Trata-se de uma pequena narrativa cujo ponto central é justamente o medo que uma mulher tem de sofrer um estupro. Cidinha, a protagonista, percebe dois homens, dentro de um trem, olhando para ela e falando na “língua do ‘p’”, um código infantil para disfarçar mensagens.
A comunicação funesta, no entanto, não escapa à Cidinha – assim como à narradora da nossa crônica – que vê o perigo disfarçado no jogo lúdico da linguagem.
A moça então decide emular como pode os modos de uma prostituta, buscando desinteressar os potenciais agressores e escapar da tragédia. No final, desvia de uma e, para a sua surpresa, cai em outra, bem ao gosto rodrigueano.
Texto pouco comentado no conjunto da obra de Clarice, “A língua do ‘p’” traz uma instigante mudança de tom, já que parte de um fato cru e apoiado na brutalidade do cotidiano.
As cautelas femininas
De volta à crônica, vemos que a ideia da cautela necessária às mulheres remete a narradora a um dito popular:
“Vou é me acautelar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar”.
Diz ela não se recordar da origem da toada, mas menciona que “boca de povo em Pernambuco não erra”, referência à origem da própria Clarice, que viveu dos 5 aos 14 anos na cidade de Recife. A sabedoria popular, um eco de outras gerações, lhe soa mais forte que todas as lições recebidas para a sua constituição educada de mulher da sociedade:
“séculos adestraram-me, e hoje sou uma fina entre as finas, mesmo como no caso, sem necessitar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar”.
A reafirmação da ancestralidade feminina dá a entender que, apesar de ter atingido o ápice do verniz civilizado requisitado às mulheres, ainda ronda seu imaginário o mesmo medo do sexo oposto que suas predecessoras – de todas as classes sociais –, em alguma medida e por circunstâncias certamente desagradáveis, aprenderam a ter.
Não é natural, mas está no mundo
Surpreendentemente, a narradora afirma que “é a favor do medo”, embora se apresse em explicar que valoriza somente “os que têm raiz na raça inextirpável”.
E nesse ponto reflete sobre o caráter “não natural” do que lhe teria gerado o pavor em questão, já que “algo natural não terá sido, posto que, sendo eu por força e sem escolha uma natural, o natural não me teria assustado”.
É uma forma elegante e esquiva de mostrar como a relação entre homens e mulheres, iniciada ainda no tempo das cavernas, não traria consigo o medo por determinação biológica, mas sim por uma longa construção social. “Algo natural não foi”, diz a narradora, “ou eu não teria conservado até hoje esse olhar de lado”.
No fim, a narradora – possivelmente ecoando a própria Clarice – faz um elogio à intuição feminina: “não, quem tem razão é este meu coração indireto, mesmo que os fatos me desmintam diretamente”. Intuição (já incrustrada no DNA da mulher, talvez?) que lhe diz, baixinho e certeira: “passeíto dá morte certa”.
Referências
1 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
2 LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
3 LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.