
Tomando água?
Santo chegava ao bar do Paulo. Estranhou ver Meleira bebendo algo que não fosse cerveja. A única coisa que não fugia da normalidade era o Marlboro de filtro vermelho preso entre indicador e médio.
Pois é, estou pensando numas coisas.
Que coisas? No momento ruim do São Paulo?
Não, nada disso. Numa coisa que li e num filme que vi ontem.
Lá vem ele falar de livro e arte de novo, pensou Santo, que puxou uma cadeira para ouvir a resenha do amigo. Meleira havia mudado muito depois que começou a consumir as coisas que seu neto lhe recomendava. Não era só Santo quem tinha essa impressão. O próprio Meleira sentia isso. Considerava estar na parte final da vida e tinha a sensação de que não há luz no fim do túnel. Os livros e filmes o inseriam num universo antes inimaginável e davam um pouco de sentido a seus dias. Mas disso Meleira não sabia.
Você se lembra de quando aquele encapuzado assaltou o bar do Paulo com um 38 e levou todo o dinheiro do caixa? Isso Meleira perguntou acendendo um novo cigarro.
Como não? Todo mundo ficou meio passado. Esse tipo de coisa nunca tinha acontecido aqui na vizinhança. Reconheceram que o assaltante era o Rudinei, que morava na rua de cima, por causa da cicatriz no braço direito. Erro de amador, o moleque tava perdido na pedra, queria dinheiro a qualquer custo. Agora tá melhor, saiu da cadeia, virou evangélico, arrumou emprego na marcenaria do Tomé, casou e tem dois filhos.
Você falou exatamente sobre o que eu tava pensando. Meu neto me passou um texto sobre reconhecimento. O título é “A cicatriz de Ulisses”, dum alemão chamado Erich Auerbach (Meleira pronunciou “Ériqui Auerbaqui”). Meio complicado de ler, mas eu lembrei muito dessa história do Rudinei quando ele fala do Ulisses, um herói dum livro bem antigo chamado Odisseia. Ele volta pra casa disfarçado de mendigo depois de muitos anos desaparecido. Precisou se disfarçar porque inimigos estavam no seu quintal, todos tentando casar com sua esposa. Uma empregada, sem saber que se tratava do patrão, vai lavar os pés do maltrapilho – parece que era um costume da época. Quando se ajoelhou pra cumprir o que ordenaram, viu uma cicatriz na perna do rapaz e se lembrou da história de quando ele era criança, em que, durante uma caçada com o avô, acabou se machucando. Reconheceu imediatamente seu amo, de quem cuidou desde o nascimento.
Santo mantinha-se atento à narrativa. Esperou pacientemente enquanto Meleira bebia, com sonoras goladas, a última metade de sua garrafa d’água antes de retomar o raciocínio.
Depois que terminei de ler o texto, meu neto recomendou que eu visse um filme chamado Incêndios. Fiz isso ontem à noite, antes de dormir e perdi o sono. Pra resumir: uma mulher do Líbano foi separada do filho, fruto dum amor proibido, logo que ele nasceu. A bisavó, antes de tirar o menino da neta, tatuou uma marca no calcanhar direito do bebê para que, se um dia a mãe o encontrasse, tivesse como reconhecê-lo.
E eles se encontram?
Se eu contar, estrago o final. Posso te passar o DVD.
Não sei, nunca fui de ver filme, só esses dublados que passam na televisão. E nem tenho aparelho de DVD.
Então vamos lá pra casa. Quero ver esse filme de novo.
Não sei, não.
Deixa de frescura. O mundo não vai acabar se você ficar uma tarde sem jogar bisca com o Campeão. Um bom filme vai te tirar da rotina, dar uma chacoalhada na monotonia.
Meleira esqueceu de dizer que, lançado em 2010, Incêndios é dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, mesmo diretor de Os suspeitos, Sicario e A chegada.