
Confira uma breve seleção de filmes que valorizam essa união de cinema e música, sob os olhos (e ouvidos) de Bibiana Lucas.

Introdução: uma fã de cenas musicais
Eu confesso: sou uma espectadora de cinema facilmente manipulável. Mas calma: não me refiro aqui às manipulações narrativas de que, por vezes, também costumo ser uma feliz vítima – sou fã de Michael Haneke e Lars von Trier, afinal –, mas sim a uma manipulação sensorial, que entra primeiro pelos ouvidos e, quando me dou conta, já estou totalmente entregue à magia de uma combinação para mim infalível dentro de uma sala de cinema: imagem e música.
Às vezes, o filme nem é tão bom e eu já me encontro naquele estágio semi-letárgico antes de pegar no sono, mas basta a tela ser invadida por uma cena musical daquelas para que meus pelinhos do corpo se ericem todos, e minha atenção se volte com tudo ao que se passa no enorme retângulo luminoso à minha frente.
Já sei o que o leitor deve estar pensando: assista a um musical, então. Não, não é disso que se trata. Aliás, por incrível que pareça, nem sou tão afeita a musicais assim. Acho que a repetição dos trechos cantados deixa tudo muito previsível, e o efeito de uma emoção inesperada acaba se perdendo no caminho. Portanto, a lista que elaboro a seguir segue um outro rumo. Nada de musicais: quero elencar aqui alguns filmes em que a música, apesar de não ter papel principal, é capaz de elevar a outro patamar determinadas cenas, tornando-as, assim, inesquecíveis a meus olhos e ouvidos.
Uma lista pessoal
Como já deve ter ficado claro, trata-se de uma lista bem pessoal, por isso me antecipo informando que muita coisa boa (quiçá clássica) acabou ficando de fora. Aproveito para avisar também que esta é só a primeira parte da lista, pois não deu para encaixar tudo o que gostaria nos estritos limites deste texto. Portanto, aguardem a parte 2.
Enfim, estes são alguns dos filmes, sem ordem de preferência, cujas cenas musicais fizeram de meu coração um lugar mais quentinho e, claro, também um lugar levemente mais dançante:
Encontros e Desencontros (2003, Sofia Coppola)
Começando, talvez, pelo mais famoso da lista, e já deixando os clichês para trás: a sequência de (What’s So Funny ‘Bout) Peace, Love And Understanding, do Elvis Costello, Brass in Pocket, dos Pretenders, e More Than This, do Roxy Music, cantadas em um karaokê no Japão por um vulnerável Bill Murray e uma sedutora Scarlett Johansson, torna palpável o desabrochar de sentimentos – ainda não muito bem definidos, é verdade – que parece estar no cerne do filme.
Os olhares e as risadas de canto de boca em meio à cantoria acrescentam charme à cena, brincando com as nossas expectativas quanto à relação que se desenvolve na tela, ao mesmo tempo em que insinuam a conclusão de que os verdadeiros seduzidos ali somos nós, os espectadores.
Antes do Pôr-do-Sol (2004, Richard Linklater)
É claro que o representante da trilogia mais romântica de todos os tempos não poderia ficar de fora da lista, ainda mais por conter uma cena em que a personagem de Julie Delpy (Céline) realiza uma apresentação intimista de voz e violão para o próprio objeto de sua autoral canção: o homem com quem ela passou uma noite inesquecível há nove anos, e que agora tem de volta à sua frente, sem que em momento algum o sentimento tenha esmaecido.
A valsinha Waltz for a Night, cantada para Jesse (Ethan Hawke), enquanto este se afunda cada vez mais no sofá da casa (e no amor) de Céline, é um prenúncio do que nos aguarda ao final (atenção para o alerta de spoiler): “você vai perder o avião”, ela avisa; “eu sei”, ele responde, confirmando o que naquele momento já nos era completamente inevitável.
Holy Motors (2012, Leos Carax)
E agora, para algo completamente diferente, vamos a um filme que não nos permite explicar nada, mas apenas sentir. A experiência advinda da música, portanto, é indescritível, mas eis-me aqui, tola, tentando resumi-la em palavras. Fato é que tenho minhas desconfianças de que ninguém que já tenha passado por esse filme saiu dele ileso.
A cena em que o personagem de Denis Lavant encarna um tocador de acordeom e é seguido no interior de uma igreja por outros inúmeros tocadores de acordeom – e, posteriormente, por outros instrumentistas também, como em uma orquestra –, entoando em uníssono uma melodia vibrante e pegajosa, constitui um dos momentos em que o cinema mais me tocou em lugares sequer reconhecíveis por mim a olho (ou ouvido) nu. Enfim, como já diria a filósofa Roberta Miranda, em seu clássico meme: “olho pro teclado de meu PC… E não sei mais o que dizer… Só sentir…”
Nocturama (2016, Bertrand Bonello) e Edifício Master (2002, Eduardo Coutinho)
Faço essa inserção aqui para mostrar como uma mesma música, quando usada de maneiras diferentes em filmes distintos, pode nos guiar para emoções também distintas, ainda que a força e a unidade da canção – um clássico, diga-se – se mantenham.
Em Nocturama, a performance de My Way é executada por um dos jovens terroristas que se escondem em uma grande loja de departamento no centro de Paris, à espera de a qualquer momento serem descobertos e, é claro, punidos. Em tal contexto, o show de Hamza Meziani, dublando a versão de Shirley Bassey para a música, é o espetáculo do presente, da ausência de qualquer vislumbre de futuro ao grupo de que ele faz parte (mas também, quem sabe, a toda uma geração); é, enfim, a apoteose do que não tem mais salvação.
Já no documentário Edifício Master, quem canta é o sr. Henrique, um antigo habitante do prédio que, na juventude, morou nos Estados Unidos e teve um encontro com Frank Sinatra. Sua performance de My Way é, assim, uma ode ao passado e ao fato de que a vida dali para a frente, como suas lágrimas (aliadas à letra da música) parecem antecipar, se resumirá a isto: lembranças de um tempo que não volta mais.
Toni Erdmann (2016, Maren Ade)
A queridinha dos programas de calouros Greatest Love of All, de Whitney Houston, é aqui entoada de maneira canhestra pela retraída personagem de Sandra Hüller, durante uma celebração familiar ao estilo petit comité, numa sequência cujo inesperado é o fator responsável por causar o efeito ora cômico, ora constrangedor, em quem está assistindo.
O mais interessante, porém, é o que resta ao final da apresentação, cuja intensidade vai escalando junto com a melodia, e a comédia vai ficando para trás para dar lugar ao drama pessoal da personagem: naqueles poucos mais de três minutos, vemos Ines se desnudando à nossa frente, com suas emoções há tanto reprimidas chegando quase a transbordar os limites da tela.
Do riso, passamos ao embaraço, e, então, à comoção, alcançando, por fim, o total arrebatamento.
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Voltamos a qualquer momento com a parte 2 da lista.
Créditos HL
Esse texto é de Bibiana Lucas para nossa coluna Cinemateca. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.