Clarice Lispector entrevistadora: a pergunta originalmente grega*

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Caricatura de Clarice Lispector por Fraga

À interrogação é reservado um capítulo especial na elaboração do discurso. Aristóteles institui o uso da interrogação na Arte Retórica ante a possibilidade de mostrar que o adversário se contradiz ou que suas assertivas são paradoxais, ou ainda, para obrigar o adversário a responder de maneira sofística, a fim de destruir a asserção proposta (ARISTÓTELES, XVIII).

No caso da literatura, as perguntas, apesar de muitas vezes não se constituírem como retóricas, igualmente podem ser propositais, no intento de engendrar um efeito estético na leitura, dado seu caráter provocativo. A obra clariciana pode incitar tal efeito, uma vez que ler Clarice Lispector também é deixar-se envolver por questões acerca do homem e do mundo. As interrogações, as dúvidas e a curiosidade delineiam a tessitura do texto abrindo-o a inesgotáveis reflexões ontológicas.

Não seria exagerado afirmar que a obra clariciana nos remete ao tí estin, ou seja, ao perguntar originalmente grego, ao qual se refere Heidegger quando tenta responder à pergunta “o que é isto — filosofia?”. O filósofo discorre sobre o próprio questionamento, uma vez que, para ele, não somente a filosofia é grega em sua origem, mas também o modo como se pergunta, mesmo que à sua maneira de questionar, ainda é grego. Se perguntamos: “que é isto …?” em grego é: “tí estin”, o que mantém a questão, ao que algo seja, multívoca.

Heidegger cita como exemplo a interrogativa: “que é aquilo lá longe?” e a resposta imediata, “uma árvore”, que, para ele, consiste na nomeação de uma coisa que não se conhece direito, logo, pode-se questionar mais: “o que é aquilo que designamos ‘árvore’?” Com a questão posta se avança para a proximidade do tí estin  grego, forma de questionar desenvolvida Sócrates, Platão e Aristóteles.

O filósofo se adianta um pouco mais nas interrogações — “Que é isto – o belo? Que é isto – o conhecimento? Que é isto – a natureza? Que é isto – o movimento?” — em que não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas se toma cuidado para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que”, em que sentido se deve compreender o tí.

Aquilo que o “que” significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a quididade, que se determina diversamente nas diferentes épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o , que significa precisamente a idéia. Aristóteles dá outra explicação ao , outra ainda dá Kant e também Hegel explica o de modo diferente.

Visto isto, Heidegger ressalta que sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através de um fio condutor que representa o , o quid, o “quê”; porém, em todo caso, referindo-se à filosofia, a pergunta “que é isto?” levanta uma questão originariamente grega.

No tocante ao tí estin, Clarice Lispector também indaga “que é isto?”, a levantar a questão originariamente grega. Tomemos como exemplo a crônica escrita para o Jornal do Brasil, cujo próprio título O que é que é? vem a concretizar a pergunta, enquanto questão da essência, que se mantém sempre viva por intermédio da essência que se interroga.

“Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto — como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente  como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupado, e de repente parar por ter sido tomado por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota — como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? E este é o nome.”  (A DESCOBERTA DO MUNDO, 1999, p.199)

Primeiramente, Clarice formula a pergunta “como se chama o que sinto?”, para depois concluir que o único modo de chamar é perguntar como se chama, uma vez que até aquele momento, conseguiu nomear com a própria pergunta.

Nota-se que a autora não perguntou primeiramente “o que é aquilo lá longe” e sim, aproximou-se de pronto da pergunta “o que é aquilo que designamos…?”, e, por conseguinte, do estin. No que concerne à nomeação de uma coisa que não se conhece direito, há o interesse pela coisa que não se conhece direito, pelo “que”, e não pela nomeação.

Clarice Lispector e seu cachorro
Clarice Lispector e seu cachorro Ulisses

Em outra crônica publicada no mesmo jornal, Clarice inicia o texto com o sugestivo título: Sou uma pergunta, e o constrói apenas com perguntas, tais como “Quem fez a primeira pergunta?”; “Quem disse a primeira palavra?”, “Por que se morre?”, “Por que há o som?”, “Por que há o espaço?”, “Por que há o infinito?”, “Por que eu existo”, “Por que você existe?”, etc….

Os “por quês?” suscitam dúvidas até sobre o próprio ato de escrever, o que se evidencia nas perguntas “Por que se lê?”, “Por que quem me lê está perplexo?”, “Por que quem me lê está vivo?”, “Por que escrevo?”

Este texto também pode ser observado enquanto texto que olha para o texto, conforme análise feita por Carlos Mendes de Sousa em Clarice Lispector: figuras da escrita, uma vez que “a especificidade da disposição  das frases (como se fosse um poema) torna mais incisivas as perguntas  sobre as questões colocadas no metatexto clariciano que repõem a primeira interrogação, a infinita pergunta: “Por que poderia perguntar indefinidamente por quê?” (2000, p.120)

No entanto, convém aqui ressaltar outro aspecto da crônica. Em um dado momento, já ao final, a questão “Por quê?” é respondida com “É porque.” Tal qual em O que é o que é?, em que à pergunta “Qual é o nome?” se responde “E este é o nome.”, Clarice igualmente responde à interrogativa com a própria pergunta, como se tentasse também explicar o “quê” por intermédio da indagação.

Há, por certo, uma ênfase à pergunta na escritura clariciana. Inclusive, existem algumas obras da fortuna crítica que apontam tal tendência, como o próprio Clarice Lispector: figuras da escrita de Mendes de Sousa, que assinala esta pose interrogante como incisiva no modo como Clarice Lispector se aproxima da literatura. De acordo o autor, a atitude da escritora perante a vida, a permanente colocação da dúvida, irá marcar seu modo de estar diante da escrita.

Clarice enxerga um “universo pronto para ser devorado na sua incompreensibilidade, mas que, de tão vasto, suscita necessariamente o problema, a interrogação que irá permanecer e marcar o tom ‘metafísico’ da escrita a ser praticada.”(SOUSA, 2000, p.121). É interessante como Sousa assinala o que ele chama de escrita /matéria interrogante clariciana:

“Sobre as origens cai a interrogação, de que dá conta a própria matéria que delas trata. Assim, uma escrita/matéria interrogante. Colocar a interrogação é introduzir a dúvida, é descentrar … Era inevitável que as dúvidas, as interrogações recaíssem sobre a sua própria literatura e a literatura em geral. Como nasceu a escrita? Como nasce esta escrita? A questão que, no trânsito interpretativo, o hermeneuta devolve como se projectasse na pergunta fundadora: de onde vem o mundo? Deparamos com uma indissociabilidade, uma convergência entre as indagações sobre a origem (em termos metafísicos e ontológicos) e sobre sua origem como escritora: como e por que sou escritora? As figuras fundadoras tentam dar corpo a essa pergunta. “(SOUSA, 2000, p.120)

O autor também observa que esse insaciável desejo de conhecer, esse participar na interrogação do futuro é corroborado sobretudo na fase final, através da consulta de cartomantes ou através da prática corrente de consulta das cartas, como é o caso do I-Ching, que deixa vestígios em muitos dos manuscritos dessa última fase.

Além disso, no interior dos textos, segundo ele, “os contornos da interrogação configuram um dos modos do desconcerto, do estranhamento que impõem a singular afirmação da escrita lispectoriana. Proliferam estranhas interrogações contaminando, apoderando-se de todo o tecido discursivo.” (SOUSA, 2000, p.121)

O autor cita como exemplo o final do quinto capítulo da primeira parte de A Maçã no Escuro, em que a cena “é ferida por perguntas que caem cheias de ironia e do distanciamento com que, na autora, é costume recortar-se esse tipo de quadros.” (SOUSA, 2000, p.121)

Como a interrogação impõe a singular afirmação da escrita lispectoriana, é de se questionar se houve uma tentativa por parte da escritora em responder às indagações, ou melhor, em interpretar o “que”, como assim o fez Platão e os outros filósofos.

Sousa propõe a obra A Maça no Escuro como o “primeiro texto mais acabado e mais ambicioso que, de um modo mais pesadamente orientado, procura dar uma resposta”.

Malgrado Sousa caracterize A Maçã no Escuro como uma tentativa de resposta, há  outros estudos que evidenciam na obra clariciana o reconhecimento da impossibilidade de resposta, como é o caso da obra A reta artística de Clarice Lispector de Zizi Trevizan. Segundo esta, “o conflito existencial configurado nos textos de Clarice Lispector acentua-se no reconhecimento da impossibilidade de encontrar ‘a grande resposta’ a todas as indagações filosóficas.” (TREVIZAN, 1987, p.21)

clarice e filhos
Clarice Lispector e seus filhos na praia

Em outras palavras, o próprio texto clariciano surge como solução romanesca para o conflito decorrente da ausência da “grande resposta”, como desabafo íntimo até, pois “o que salva é escrever distraidamente.”(LISPECTOR apud TREVIZAN, 1987. p. 21)

Apesar de parecerem opostas, tanto a assertiva de Sousa quanto de Trevizan conduzem-nos a caminhos muito próximos, cujo destino se encontra nas palavras da própria escritora: “Por quê? É porquê.” ; “Qual é o nome? E este é o nome.”

Se abstrairmos o “que” teremos a pergunta. A própria interrogação explica o ti, pois o “único modo de chamar é perguntar”. Ora, se a resposta ao por quê é porquê intransitivamente, o próprio “por quê?” se responde pela pergunta.

Posto isso, ao cogitarmos as duas análises de Mendes e de Trevizan, que, em um primeiro momento são incompatíveis, pelos questionamentos se aproximam, pois a impossibilidade da grande resposta reside na pergunta, que por sua vez corresponde à tentativa de resposta, por intermédio da interrogação.

É possível, ainda, estabelecer uma relação entre o e o próprio ato de escrever. Em Um Sopro de Vida, o narrador enuncia que escrever é apenas o reflexo de uma coisa que se pergunta, e ainda que “escrever é uma indagação” (1999, p.16).

A aproximação do “que”, uma interrogação em sua essência, se dá escrevendo, conforme reitera o narrador de A Hora da Estrela: “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.” (1999, p.11)

A literatura clariciana, enquanto uma tentativa de interpretar o pela própria pergunta, não pretende estabelecer respostas assertivas às indagações filosóficas, e sim perguntar. Ante o mistério do mundo, a tessitura dos textos se forma e se delineia pelas próprias interrogações, enquanto tentativa de chegar o mais perto possível da essência, da matéria ainda bruta, da “primeira pergunta”.

Como é possível constatar, portanto, a escritura clariciana se assinala por interrogativas metafísicas, semelhantes ao perguntar grego, ao tí estin, cujo corresponde à própria interrogação. O tí estin, igualmente, pode se relacionar com o próprio ato de escrever, erigindo, dessa forma, questões metalingüísticas enquanto respostas à pergunta “Por que escrevo?”.

A escrita de Clarice Lispector não somente apresenta interrogações como também é mobilizada por elas, escrita esta que ecoa no roteiro das entrevistas realizadas pela Clarice entrevistadora para as revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente; um vez que suas entrevistas, elaboradas no formato de perguntas e respostas, se valem da pergunta como desencadeadora do diálogo.

Durante as décadas de 1960 e 1970, Clarice Lispector trabalhou como entrevistadora para as revistas Manchete (maio 1968-outubro1969) e Fatos e Fotos / Gente(dezembro1976- outubro1977), produzindo um total de 83 entrevistas (59 entrevistas para a Manchete e 24 para a Fatos e Fotos/Gente).

Interessante observar que, apesar de ter como entrevistados, artistas, políticos, e personalidades da época, como Chico Buarque, Tarcísio Meira e, até mesmo, o Padre Quevedo, Clarice manteve o caráter metafísico em suas perguntas.

No estilo “pingue-pongue”, a entrevista se aproxima de seu entrevistado com indagações como “O que é o amor?”, “Qual a coisa mais importante do mundo?”, “Qual a coisa mais importante do mundo para você como indivíduo?”, as quais o induz a “olhar para dentro”, a aprofundar-se no próprio ser, exigindo um maior contato consigo mesmo.

Desta forma, por meio da fantasia de carnaval, por exemplo, Clarice Lispector extrai de seu entrevistado, Clóvis Bornay, considerações a respeito da personalidade humana, subentendidas na explanação sobre a necessidade daquele que interpreta modelos carnavalescos em ser “bom ator”, capaz de possuir “a inteligência de um gênio, a força de Hércules, a bondade de Cristo, as alegrias de uma criança, a ternura de uma mulher e as artimanhas de um demônio”. (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano16, n. 879, p.48-49, 22 fev. 1969).

Ou ainda, ao entrevistar “o primeiro figurino do país”, Tereza Souza Campos, pelo simples fato de “não simpatizar com ela”, Clarice revela em sua entrevistada uma mulher, que, muito além de ser a mais elegante, também é “inteligente”, que, com os “olhos virados para dentro”, reflete sobre o que é, capaz de despertar a simpatia de alguém que, mesmo sem lhe ter empatia, em um primeiro momento, chama-a de “une femme d’esprit” (LISPECTOR, C. Diálogos Possíveis com Clarice Lispector. Revista Manchete, Rio de Janeiro, ano16, n. 869, p.40-41, 14 dez. 1968).

Para Clarice entrevistadora, as entrevistas correspondem uma forma de compreensão da Vida, uma vez que é clara sua preocupação com o entrevistado não enquanto celebridade, porém, enquanto ser humano, misterioso para consigo mesmo.

É possível que, também nas entrevistas, Clarice Lispector não procurava respostas, mas sim a pergunta em essência, o ti estin, cuja chama se mantém viva porque se interroga.

 

BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO.A poética clássica. Tradução: Jaime  Bruna.São Paulo: Cultrix, 1997.
ARISTÓTELES, A arte retórica e a arte poética. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint.
HEIDEGGER, Martin. Que é isto — a filosofia?  e Identidade e Diferença. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro (romance). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1961.
________________A descoberta do mundo (crônicas).  Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
________________De corpo inteiro (entrevista). Prof.ª Dr.ª Marlene Gomes Mendes (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
________________Entrevistas (entrevista). Organização e prefácio de Claire Williams. Preparação de originais e notas biográficas de Teresa Montero. Rio de Janeiro: Rocco, 2007
SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: figuras da escrita. Braga: Universidade de Moinho / Centro de Estudos Humanísticos. 2000.
TREVIZAN, Zizi. A reta artística de Clarice Lispector. São Paulo: Pannartz, 1987.

*este texto se baseia na minha tese de doutorado: “As tramas de um diálogo: relações intersubjetivas nas entrevistas de Clarice Lispector” defendida em 2011 na PUC/SP.

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