A crônica abaixo foi enviada pela escritora colombiana Marcela García Caballero. Entenda mais na breve introdução abaixo
Por toda a minha vida, quis escrever sobre minhas raízes, meu povo, minha família, pois acredito profundamente que só se pode escrever o que se sabe. Meus antepassados fazem parte precisamente do que sei, minha região e seus costumes fazem parte do que sou e as histórias que encontro pelo caminho me alimentam e convertem no que quero ser. Por isso escrevi sobre estas pessoas e estas anedotas, graças a elas, hoje posso dizer que sou um ser humano melhor.
Me chamo Marcela García Caballero. Sou estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo da Pontificia Universidad Javeriana, atualmente estou cursando o semestre de práticas universitárias em RCN RADIO e me agrada profundamente que em qualquer parte do mundo possam conhecer o que o mestre Gabriel García Márquez fez durante toda a sua vida: contar as historias do universo feminino e os costumes dos povos costeiros da Colômbia.
A crônica abaixo faz parte do livro Historias de mi pueblo.
Uma mulher que pega em armas
Desde que entrei em Mompox, senti que estava pisando em uma cidade parada no tempo. O colorido das casas brancas estilo colonial, as seis igrejas que se impõem na cidade, as praças de mercado espaçosas, as lâmpadas parisienses que se encontram nas ruas e o rio que acompanha a avenida principal evocam os tempos em que a Colômbia se chamava Novo Reino de Granada.
Na avenida que acompanha o rio Magdalena, encontramos a casa que há mais de cento cinquenta anos pertenceu à Marquesa de Santa Coa. Uma habitação que por fora está pintada de um vinho tinto avermelhado e decorada por colunas e janelas verdes que lhe dão um toque de imponência. As telhas de barro parecem não terem sido trocadas há séculos, e a porta escura de ferro, de mais ou menos dois metros e meio de altura, abertas de duas em duas, convidam a entrar todos que parem em frente.
Às dez e dois da manhã, em um dia caloroso e úmido de setembro, sai desta inigualável edificação Faiza de Gutiérrez de Piñeres, que vive ali desde que se casou há mais de seis décadas. Aos 83 anos, esta mulher tem mais vida que qualquer adolescente.
Sua pele é dourada como o trigo, a cor de seu cabelo é uma mescla de roxo e branco, seu nariz é grande, seus olhos cafés são pequenos e redondos, e tem umas olheiras que delatam sua idade. Contudo, se conserva muito bem, por ser magra, somente com um pouco de barriga e tem uma personalidade tão avassaladora que não se assemelha à de nenhuma pessoa da terceira idade que se conheça.
Vestida com uma roupa fresca para o clima, uma camisa de algodão estampada de flores e uma bermuda azul, com seu sorriso caloroso capta o olhar de todos. Como toda mãe da província, cumprimenta com fortes abraços e insiste em oferecer comida a cada 20 minutos.
Faiza caminha por sua casa, de onde sobressaem os tetos altos de 300 anos, os quartos germinados, os dez balanços para entreter visitas e o fabuloso pátio interno que transmite paz somente ao vê-lo. Esta arquitetura mostra a importância da tradição e o desejo de manter a família unida, posto que tudo foi feito para deixar o isolamento de lado e sentar-se a compartilhar.
Um dos lugares mais impactantes da casa, onde se encontram duas mesas, uma rectangular de dez assentos e uma circular de seis, puxa uma cadeira cujo encosto é esculpido a mão, esfrega o rosto com os dedos e começa a falar de sua vida.
Amor comprometido
“Me mudei para esta casa quando casei com meu marido. Eu tinha só 19 anos, mas, desde então, quem toma as decisões aqui sempre sou eu”, conta Faiza com a absoluta sinceridade com que costuma falar com todo mundo.
Casou com Germán Gutiérrez de Piñeres, um fazendeiro de gado famoso da região que, como muitos outros homens, começou trabalhando para sua família. Se conheceram quando ele acompanhava seu primo que visitava a noiva, uma vizinha de Faiza. Ali se apaixonaram, mas foi um romance diferente dos de hoje.
“O primeiro presente que Germán me deu foi uma égua que se chamava La Adelaida. Tem gente que dá rosas, mas ele me deu um animal. Talvez assim como começou foi sempre, pois toda minha vida girou em torno do trabalho e o gado”, diz entre risadas.
Quando Faiza se põe a rir é como se se inundasse o quarto de sorrisos. A luminosidade em seus olhos e o ruído estrondoso de suas gargalhadas fazem com que seja impossível não ser contagiada por sua alegria.
“Depois de muito tempo, de visitas vigiadas e de me incomodar com presentes, me conquistou. Nos casamos e ele me levou para viver em sua casa. Não como agora que primeiro a levam pra casa e depois se casam”, conta com gestos de desaprovação. “Não, senhor. Aquilo sim era de verdade, verdade. Como te disse, em minha casa eu tomo as decisões e, por isso, eu não permito que aqui venham casais que não estejam casados. Se minha neta quer vir com seu noivo, vá para outro lado com ele”, afirma de maneira firme.
Enquanto esfrega as mãos, Faiza acrescenta serenamente, “o bom de viver 28 anos viúva, me mantenho sozinha, é que não há ninguém que me contrarie em nada. Não recebo ordens de nenhum de meus filhos”.
Esta matrona momposina gasta anos controlando todo o mundo desde a sua casa. Vive dos aluguéis de diferentes propriedades e suas fazendas que seguem produzindo sozinhas. “Olha, nessa casa meu marido acabou quase dependendo de mim. Eu ia sempre do lado dele, fazendo as contas, acompanhando-o em suas viagens de até três dias para trazer para fora os 900 novilhos que mandávamos semanalmente a diferentes portos ribeirinhos, e dirigindo quantos empregados eram necessários enviar”, conta inflando o peito de maneira orgulhosa.
“Ainda eduquei aos meus seis filhos, a uma neta e a um filho natural que Germán teve antes de nos casarmos. Meu marido nunca soube o que era isso, ele se dedicava honradamente ao trabalho. Eu, por outro lado, fazia as duas coisas. Tive cinco empregados para que me ajudassem, mas tudo funcionava sob minha ordem. A todos meus filhos mandei estudar em Bogotá, inclusive mandei estudar em Barranquilla os dois filhos de uma das minhas empregadas de confiança”, conta quanto enumera com suas mãos a seus filhos, enteado e a suas empregadas.
Seguidamente recorda como terminou de educar a seu marido. “A Germán até ensinei a comer, pois ele não tinha ideia do que era alimentar-se como devia. Por isso, ainda que me doeu na alma perdê-lo, quando me deixou há 28 anos, eu já tinha tudo organizado e sabia exatamente como maneja-lo, pois, nas últimas, sempre tem sido eu a que o controlei”.
De repente, entra um homem de uns sessenta anos gritando: ‘Mami’. É Germancito, o filho natural de seu esposo, a quem Faiza havia adotado quando tinha só cinco anos. De todos seus filhos, este é o único que ficou vivendo com ela em Mompox.
Germán se senta ao seu lado, mas só para escutar as ordens do que manda fazer sua mãe. Germancito, um homem magro, grisalho e pai de três filhos já de maior, todavia a obedece como se jamais tivesse deixado de ser criança.
Se foi seu filho, mas entrou outro homem.
É Antonio, um dos poucos empregados que restam em sua casa. Tem uns trinta anos, é pastuso[i] e, como diz ela sem nenhum sentido de discriminação, “é tão bobinho como qualquer pastuso, me toca escrever as coisas para que as entenda o vendedor, pois ninguém lhe compreende quando fala. Eu o mantenho para que aprenda e sua família não morra de fome, mas acredito que seria melhor sem ele”.
Mulher sem medo
Durante a pior época de violência entre a guerrilha, os paramilitares, os traficantes e o Exército Nacional, entre as décadas de 80, 90 e começo deste século, Mompox e o resto de Bolívar foram alvejados de ataques e de derramamento de sangue. Muita gente saiu em busca de um refúgio, já ela jamais em sua vida se considerou uma mulher com medo, mas sim, imprudente.
Se levanta e caminha até a sala principal, onde está mais fresco e pode sentar-se em sua cadeira de balanço preferida. De repente, seu olhar se congela e começa a falar sobre as dificuldades que teve que passar, mas não se arrepende de como as enfrentou. Cinco vezes esteve frente a frente com a morte, mais jamais deixou que isso a impedisse de seguir produzindo, pelo contrário, cada vez que vivia uma experiência de vida ou morte, saía com mais coragem do que entrou.
“Não tenho medo de nada. Nem sequer de morrer. Por isso, sempre tomo decisões que para meus filhos podem parecer irresponsáveis, mas que para mim são necessárias, tanto para a sobrevivência deles como para a minha”, conta mexendo-se lentamente. “Sobrevivi a cinco ataques da guerrilha que se apresentaram no trecho entre Carmen de Bolívar e San Jacinto, mas houve um que ficou marcado em minha memória pela forma como atuei”.
“Várias vezes tive que ir a Barranquilla por questões médicas ou econômicas e não tive outra opção que não fosse ir de táxi. Em uma dessas viagens vi um dos ataques. Foi há dez anos e recordo haver visto um menino de uns dezoito anos armado até os dentes e ter sentido pesar por ele. ‘Se fosse meu filho ou meu neto’, pensei”, disse ainda com genuína preocupação pelo jovem.
“Com Faiza havia um grupo de bandidos, embora não sei ao certo se eram paramilitares ou guerrilheiros. Começou um tiroteio que nem te digo e nos escondemos, o taxista e eu, atrás das cadeiras. Ao fim, quando baixaram os tiros, mas ainda restavam vários bandidos armados, saí do táxi. O taxista gritou que não fizesse isso, mas eu precisava chegar em casa. Então peguei mina bolsai e me pus a caminhar entre as pessoas. Havia gente chorando, gente morta, caminhões incendiados e tipos com armas até pra vender. Mas não me deu medo. Comecei a caminhar e me preocupei o caralho o que me fossem dizer. Me preocupei o caralho que as balas ainda estivessem quentes. Precisava chegar e o medo nunca foi um fator decisório em minha vida”, afirma Faiza com a fortaleza que só uma mulher como ela reflete.
Faiza para a cadeira de balanço e começa a caminhar pelos quartos. Chegamos a um que tem o teto mais alto de toda a casa. Era o quarto nupcial que, mesmo que ela não dorme ali faz muitos anos, mantém intacto. Apenas entra segura mecanicamente uma fotografia, a levanta e a põe contra o peito. É uma foto do ex-presidente e hoje senador da República Álvaro Uribe Vélez, e enquanto a mostra, diz: “Neste país tem havido muita violência. E este povo tem visto muito. É por isso que apesar de que jamais me deixei mandar por ninguém, acredito que abriria exceção de receber ordens do único presidente que serviu para algo neste país”.
Orgulho materno
Sai do quarto nupcial e avança até deter-se em sua porta principal, onde há mais retratos de sua família. Gosta de parar ali, pois desse lugar pode ver o rio Magdalena, águas que sempre enchem-na de tranquilidade.
Ainda que diz que se sente contente pelas realizações de todos os seus descendentes, realizações das quais diz ser patrocinadora oficial, está particularmente cheia de orgulho quando pensa em sua neta Faiza.
“A minha neta Faiza eu eduquei, já quando não tinha senão poucos a quem criar e, talvez por isso, acredito que é com ela que mais me identifico”, conta usando um pouco a língua para molhar os lábios. “Eu a criei, já que sua mãe, uma venezuelana que dormiu uma vez com meu filho, me deixou a cargo. Ela sabia que o melhor era deixá-la a mim e, ainda que hoje em dia ambas têm uma boa relação, a mãe de Faiza sou eu. Por isso, quando me disse que tem ganhado todos os prêmios em sua universidade nos Estados Unidos, sinto um orgulho de mãe como o que senti com meus outros filhos. Ela se chama igual eu e tem muito de mim. É forte como eu, porém mais audaciosa. Por isso sei que chegará longe”, diz enquanto alcança uma fotografia de sua neta, uma jovem de uns vinte e cinco anos, bonita, magra e com a cor dos olhos e o do cabelo café.
Faiza se detém e observa uma imagem de sua filha Julia junto ao mestre Gabriel García Márquez, em um sofá de couro marrom. Foi feita há uns sete ou oito anos quando Julia trabalhava no Ministério da Cultura do Governo de Uribe e é uma das relíquias da casa.
Adora o autor colombiano tanto como a seus filhos, pois, mesmo que não o conhece, acredita que sempre transmitiu em palavras uma versão exata do que a cultura costenha. Quando lhe dizem que se parece com Úrsula Iguarán, responde dizendo, “não mereço ser comparada com ela, mas de igual forma muitíssimo obrigado”.
Faiza volta a sentar-se em sua cadeira de balanço preferida e se mexe como gosta. Não diz nada, mas seu olhar está focado nas fotos, como se estivesse repassando sua vida em um par de segundos. Recordar e falar de todos os seus descendentes talvez se tornou um costume que começou como qualquer outro se convertendo em uma aventura pelo tempo e, portanto, pela felicidade.
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[i] Pasto é a capital de um estado colombiano chamado “Narinho”, no Sul do país, e de onde vêm os “pastusos”. Com uma população de ascendência indígena, são alvos de piadas em todo o país por, segundo sua fama, não serem muito inteligentes, semelhante ao que se faz com as pessoas do interior aqui no Brasil.
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Tradução: Vilto Reis