Em Com armas sonolentas, Carola Saavedra discute a relação de presente e passado de três mulheres – e que infelizmente pode ser um paralelo ao triste incidente no Museu Nacional do Rio de Janeiro
(…) há uma dor tão grande, uma dor antiga, algo intenso como a morte, mas não é a morte, é outra coisa, é muito estranho, você não tem futuro nem passado, que espécie de espírito é você?
Poucos dias após terminar a leitura de Com armas sonolentas (Companhia das Letras, 2018), novo romance de Carola Saavedra, autora finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, vi o Museu Nacional da UFRJ queimar em chamas no Rio de Janeiro. Foi inevitável que os acontecimentos externos afetassem diretamente o texto e todas as coisas que ele me diz.
Com armas sonolentas é o romance menos realista de Saavedra, que já havia publicado Toda terça (2009), Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2009) e Inventário das coisas ausentes (2014). Aqui, animais falam, mortos se comunicam com vivos, e sonho e realidade se confundem em uma narrativa tão política quanto intimista. O livro traz a história de três mulheres: Anna – uma jovem atriz de origem pobre que se muda para a Alemanha para tentar alavancar a carreira; Maike – uma estudante universitária alemã que encontra na Língua Portuguesa uma estranha conexão com o Brasil; e Avó – uma moça sem nome que se muda para o Rio de Janeiro aos 14 anos para trabalhar como doméstica em uma casa de família. Todas estão conectadas por uma genealogia que, aos poucos, é revelada ao leitor.
O romance reimagina temáticas já caras à escritora: a condição da mulher diante de si e dos homens; a vida no exterior; a escrita e todas as dúvidas que ela impõe; a memória e o abandono. Essas duas últimas, talvez, sejam o ponto central do livro e também o que o faz ganhar novos contornos diante dos escombros do Museu. Anna, a primeira personagem que nos é apresentada, abandona o Brasil e tudo o que conhece em busca de uma chance como atriz na Europa. Quando chega à sua nova casa, em uma cidade nos arredores de Frankfurt, vê-se esquecida pelo marido alemão, presa a um idioma que pouco conhece e que a torna uma pessoa diferente do que um dia fora, e grávida de uma filha que não escolheu e que virá a abandonar após o nascimento.
Maike, por sua vez, é alemã, mas não se parece alemã; é mulher, mas não parece mulher; e tampouco se parece com os próprios pais. Além disso, carrega no corpo a cicatriz de um incidente de infância que, aos vinte e poucos anos, ainda não compreendeu muito bem. A jovem decide deixar para trás o seu país de origem para entender o próprio passado em um uma terra sobre a qual não sabe muito: o Brasil.
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Já a personagem “Avó” é obrigada pela própria mãe a abandonar a família e ir para o Rio de Janeiro trabalhar na casa de uma família rica no bairro de Copacabana. Lá, engravida do filho dos patrões e é coagida a fingir que a criança não tem um pai, criando uma filha que não conhece a própria origem e enfrenta problemas de identidade.
É o desconhecimento do próprio passado que move todos os conflitos e desencontros da história. As três mulheres imaginadas por Saavedra sentem-se deslocadas do tempo e do espaço, como se faltasse uma peça fundamental para que possam seguir com o próprio futuro. Anna, Maike e a Avó estão perdidas em novas cidades, em conflitos familiares que são incapazes de entender, e em idiomas com os quais não conseguem lidar. Assim, ficam sem saída para fazer as perguntas que as poderiam levar às respostas que buscam. E, em algum nível, se veem sumindo.
Ficção e realidade, por vezes, tentam passar a mesma mensagem. O prédio centenário, casa da Corte Portuguesa e de pesquisadores que tentam entender as origens do Brasil, queimou diante de uma cidade que, frequentemente, tende a ignorar o próprio patrimônio histórico, e busca, a todo tempo, ser um outro lugar qualquer, um lugar do futuro e com pouco passado. Virou cinzas pela negligência dos que deveriam compreender o seu legado melhor do que ninguém: aqueles que ali estavam para garantir sua continuidade. Com armas sonolentas parece querer nos dizer justamente isso: é difícil aguentar as queimaduras do presente sem experimentar as dores da própria História.