“Todos esperavam um livro engajado, político, no sentido restrito, e o escritor veio com Pilatos, que é lato sensu. Pornográfico. Satírico. Escatológico. Porra-louca”.
Tem um livro do Cony que acho do caralho – embora seja literalmente isso que falte ao protagonista do romance. Pilatos, é o título. Manja? O escritor considera esta a sua melhor obra e eu concordo. Carlos Heitor Cony é autor de um brilhante artigo intitulado Revolução dos Caranguejos, publicado no Correio da Manhã três dias após o Golpe de 1964, que completa 50 anos na próxima segunda-feira, 31 de março. Mas é na história do homem que conserva, num pote de compota, o pênis decepado num acidente, que ele traça o retrato mais contundente sobre a situação política do país durante os Anos de chumbo.
O romance foi escrito em 1972, quando Cony tinha 42 anos. Todos esperavam um livro engajado, político, no sentido restrito, e o escritor veio com Pilatos, que é lato sensu. Pornográfico. Satírico. Escatológico. Porra-louca. A Esquerda soltou os cachorros e acusou o escritor de covardia, de tirar o corpo fora do debate. E assim me rendi ante a força dos fatos: lavei minhas mãos como Pôncio Pilatos. São os versos da letra de Samba Erudito, do Paulo Vanzolini, que inspiraram o título do romance. Depois do livro, ele ficou 23 anos sem publicar outro romance, até voltar à literatura com o consagrado Quase memória, de 1995.
Pilatos é a metáfora do homem destituído de todo o seu potencial; de cidadãos, aleijados de seus direitos; de um país, que teve as forças tolhidas por uma ditadura militar. Quando vejo a reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e comentários afirmando que o Brasil seria um país muito melhor se ainda marchasse sob o jugo dos militares, penso numa cena do romance. Perto do Hotel Glória, enquanto Álvaro Picadura, o narrador da história, ignora um grupo de jovens se divertindo, um homem se aproxima e comenta: Estão felizes, hein? O depauperado personagem do Cony, retruca: Estão mal informados!
Uma curiosidade: Álvaro Picadura nomina o pênis, amputado, de Herodes. E é ele, na verdade, o protagonista do livro.