A relação da vida real com a criação de personagens na literatura, no teatro e no cinema.
Quando você pensa em uma história ficcional, qual é a primeira coisa que lhe vem à mente? Dificilmente será o cenário ou outro elemento que não o(s) personagem(ns). Não há enredo que se sustente sem personagem. Um romance até pode começar com uma descrição, mas, em algum momento, os personagens começarão a aparecer, dando início, de fato, à história. Mesmo o narrador, em 1ª ou 3ª pessoa, não se sustenta sozinho. Sem personagem, não há ação, conflito, questionamento, nada. Toda trama trata, de uma maneira ou de outra, de questões humanas, e não pode fazê-lo sem o componente humano (ou humanizado).
Assim, o livro A Personagem de Ficção contém uma série de ensaios produzidos por diversos autores sobre esse elemento fundamental da ficção, discutindo suas concepções na literatura, no teatro e no cinema. Apesar de ter sido lançado em 1964 e citar algumas referências datadas, pouco conhecidas atualmente, a obra ainda é válida por sua discussão teórico-comparativa.
A primeira seção, Literatura e Personagem, preparada por Anatol Rosenfeld, serve como uma introdução ao tema. Nela, o autor questiona o conceito de literatura, que acaba parecendo elitista se for considerado sinônimo de “belas letras” e se levarmos em conta que, em certas tentativas de classificação (do que seria ou não literatura) privilegiamos certas obras e autores em detrimento de outros mais por seu prestígio ou por sua contribuição para o conhecimento humano do que pela coerência de critérios. Há certos elementos, entretanto, que, de maneira geral, diferenciam a obra literária de outro texto qualquer. O narrador, as personagens e as referências internas. É um tipo de linguagem e narração muito peculiar, mais unitário e mais específico que caracteriza uma obra fictícia.
Outro aspecto importante abordado é a função e a importância da ficção nas nossas vidas. O espaço ficcional nos coloca em uma posição privilegiada, ao mesmo tempo distantes e próximos a acontecimentos particulares que, no dia a dia, não seríamos capaz de parar para observar e refletir sobre. Assim, Anatol afirma que:
“[…] a grande obra literária nos restitui uma liberdade – o imenso reino do possível – que a vida real não nos concede. A ficção é o lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação.”
E é por intermédio dos personagens que podemos vivenciar essa experiência. Entrando na segunda parte, Antônio Candido trata da Personagem do Romance. O crítico lembra que “o enredo existe através das personagens”, sendo estes o que há de mais vivo no romance. Os personagens podem ser baseados em resquícios da personalidade do autor, pessoas reais, figuras históricas, outros personagens, etc. Porém, todo personagem, no final das contas, acaba sendo inventado, pois ele é moldado ao contexto da obra. Quanto à questão da verossimilhança, elemento também importante para diferenciar a literatura de outros tipos de texto, Candido destaca que o conceito não pode ser confundido com a aproximação exata do real, já que diz respeito, mais restritamente, à coerência interna da obra.
“Quando, lendo um romance, dizemos que um fato, um ato, um pensamento são inverossímeis, em geral queremos dizer que na vida seria impossível ocorrer coisa semelhante. Entretanto, na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida. […] O que julgamos inverossímil, segundo padrões da vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro.”
Retomando um pouco o raciocínio de Anatol, o autor reitera que uma das funções capitais da ficção é “nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”. O universo literário, portanto, é muito mais controlável do que a realidade.
Quanto aos tipos de personagens, eles podem ser rasos ou profundos, com maior ou menor complexidade psicológica, dependendo do contexto em que estão inseridos e de sua função na obra. No entanto, um personagem sempre é delimitado, ou seja, há um número de características básicas que o definem, mais coerente e mais intenso do que as pessoas reais. Isso porque, no limite do tempo e do espaço escolhidos na obra, os personagens precisam, para apresentar uma história interessante, se envolver em conflitos diversos e reagir de acordo com um padrão (claro que esse modelo pode ser quebrado por narrativas de vanguarda, mas vamos considerar aqui o estilo tradicional).
Em seguida, Decio de Almeida Prado aborda A Personagem no Teatro. No gênero dramático, a personagem se faz ainda mais fundamental, pois é o centro de toda ação que movimenta a trama. No palco, não há outros elementos como o narrador ou a descrição de cenários. Tudo depende dos personagens ali representados. Então, se, no romance, existe a narração para conduzir a trama e revelar os pensamentos dos personagens, no teatro podem ser usados recursos como o coro, o confidente, o aparte (intervenções dirigidas à plateia por um personagem) e o monólogo. Entretanto, se não forem bem utilizados e em momentos propícios, esse recursos podem soar demasiado artificiais. A melhor maneira de desdobrar as características de cada personagem é através de suas ações. E por ação entenda-se não somente a movimentação física no palco, mas todo jogo de cena dos atores, até mesmo os gestos, expressões, falas, etc.
Por fim, Paulo Emílio Sales Gomes fala sobre A Personagem Cinematográfica. Ele compreende o cinema como “uma simbiose entre teatro e romance”, por reunir elementos em comum com os dois gêneros. Há um enredo como no romance e representação com atores como no teatro, apenas para resumir a ideia. O professor também realça que, no cinema, é comum que os atores ganhem mais destaque do que seus personagens, devido à exposição da imagem do artista. O ator, de certa forma, acaba se tornando também um personagem, se pensarmos na repercussão criada pela mídia, por exemplo.
Assim, A Personagem de Ficção é uma obra interessante tanto para escritores quanto para estudiosos e leitores, que queiram se aprofundar um pouco na questão de criação e tipologia de personagens.
Referência:
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Decio de A.; GOMES, Paulo E.S. A Personagem de Ficção. Editora Perspectiva. São Paulo: 1972. 3ª e.