Crava as unhas nas palmas das mãos ásperas, procurando algo na memória. Por que alguém a manteria cativa? Paredes esverdeadas, escuras nos cantos. Cheiro de merda de tantos dias, semanas, meses – quanto tempo? – se acumulando por ali. O calendário, pendurado sobre a pia do filete d’água perpétuo, é de seis anos atrás. Dezembro é o único mês que ainda tem um cavalo visível. Molha as pontas dos dedos e tenta umedecer o cabelo. Desliza pelos fios de palha e começa a tremer. E se não for essa criatura especial? E se apenas estiver ali presa por outro motivo? Não para ser estudada, observada. Na escuridão de seus pensamentos, algo parece clarear. Uma criança. Pele incolor e lábios fininhos. Se joga em seus braços, por mais que lhe peça que tome cuidado. Mas a lembrança é interrompida pelos sons. A escada de madeira denuncia passos de quem chega. Reconhece pela silhueta.
“Tá com fome?”, este alguém provoca.
“To”, responde.
“Imaginei, depois de dois dias. Você me entende, não?”
“Sim, sim. Trouxe alguma coisa?”
“É o único jeito de me vingar, querida”.
“Por favor, me deixe comer”.
“Claro”, diz e estende um pote na direção dela, mas antes que aproxime a comida das grades, recua e grita, “Espero que morra aí dentro! Que apodreça! Que os ratos lhe comam!”
Pouco depois, está novamente sozinha. Qual o sentido deste diálogo? Ainda que a fome tente lhe controlar, a busca por uma resposta se torna questão de sobrevivência. Se sente tão suja, tão miserável. Quem sou eu? E resolve se lavar, mesmo restando apenas aquele filete d’água na pia. O pior acontece ao tirar os trapos vestidos como blusa. Sobre o seio esquerdo encontra uma tatuagem. Flechado, um coração tem como legenda dois nomes, Bianca e Clarissa. Ela então sabe quem é. Suas pernas parecem perder os ossos. É explodida por dentro. Uma tristeza tão grande, raiva de si mesma. Sim, quando Bianca voltar, pedirá desculpas, suplicará por perdão. Mas deseja trazer Clarissa de volta, a débil e adotada pequenina, morta por um abraço negro que nada mais desejava além de expressar amor.
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Ilustração de Fernando Xavier.
*Conto desenvolvido em oficina de criação literária do escritor Marcelino Freire (em 22/07/2014)