Conto: As Caixas de Papelão da Família A. Almeida

0

conto-ilustrado

Nosso apartamento, como se espera de um apartamento, abriga um lugar por vezes sombrio, onde é guardado nosso passado, talhado em papéis, quinquilharias, objetos inúteis e mais um sem número de peças inutilizadas do cotidiano. Mantemos o local [que se resume a várias caixas de papelão desequilibradas no quarto dos fundos] intocável, atordoados com a sua existência, que, ainda assim, se exibe diariamente contra nossa vontade. Bem verdade, evitamos olhares diretos às caixas de papelão, empacotadoras do nosso pedaço inutilizado. Por vezes, entretanto, largamo-nos em espiadas rápidas e oblíquas sobre aquelas caixas: pequenas, grandes, inteiras, rasgadas, a quase rebentarem de passado.

O depósito de ontens nos imobiliza. Chega a ter cheiro, aquilo de pretérito que escondemos no quarto dos fundos. Quando nos deparamos com a necessidade de revirar as caixas, adiamo-la a um futuro distante, indefinido pelo excesso de pó do lugar. Passados alguns dias, nos esquecemos da necessidade, e continuamos todos a seguir nossas vidas, distantes das caixas e do futuro do pretérito. Mas, numa noite, após o horário do jantar, aconteceu. Tia Gina, que gosta de bater no peito, orgulhosa, a repetir que sua vida é um livro aberto, arriscou-se e cismou que não passaria daquela data, iria organizar seu passado de papelão, a torná-lo visível e limpo, “quer queira, quer não”.

Tia Gina tem um corpo magro e desajeitado; quando anda, se equilibra neste, com mãos e pés dissonantes, como que prestes a resvalar. Usa sempre roupas coloridas que combinam com sua voz, um agudo que nos lembra o “tô fraco” da galinha d’angola. Não por acaso, seu irmão, A. Almeida, a apelidara de Pintada. Nunca a chamamos pela alcunha, claro, apenas ele, quando se esforça por demonstrar o carinho de irmão. Tia Gina não gosta do codinome, há que se admitir, mas ri gostosamente dele.

E naquele dia, a magra e desafinada Tia Gina cacarejou determinada que iria arrumar “aquilo”, iria se chafurdar naquela poeira “quer queira, quer não”. Ajeitou a blusa amarela, cinza e verde, dobrou as barras da calça branca e partiu em seu andar torto rumo ao lugar proibido. Sentimo-nos desafiados. A. Almeida interrompeu os passos da irmã:

— Mas… Pintada — piscou moroso e alertou — sua renite…

A irmã manteve-se em seu corpo determinado, pouco disse, apenas soltou seu alto e impaciente “tá, tá”, e continuou seus passos, já próximos das caixas. À medida que se aproximava, a poeira se intensificava, e os olhos e o nariz de Tia Gina ganhavam um tom vermelho-rosa. Ela se parecia com uma bandeira quando começou a espirrar ininterruptamente por alguns minutos, já em frente às caixas.

A. Almeida interveio persistente:

— Ginoca… melhor não. — apoiou a mão em seu ombro — sua renite…

Tia Gina balançou negativamente a cabeça e permaneceu agachada, quase de cócoras. Não entendíamos sua teimosia, afinal, mal conseguia se manter naquela posição desengonçada, estremecida pela sequência de espirros. Quem sabe, não se tratasse de teimosia, mas talvez de falta? Sim, pois de teimoso não se suporta vinte espirros seguidos sob uma cortina de poeira. Mas ela, por ausência, resistiu, e inesperadamente parou de espirrar. Apressada, começou a vasculhar nas caixas algo de familiar, algum objeto ou outra peça que a fizesse se sentir menos estranha ante àquela bagunça.

Iniciou pela caixa menor, dependurada sobre as demais. Uma por uma, retirava cada peça, examinava, cheirava, fazia uma careta, e, sob a exclamação aguda peloamordedeus, a largava no chão empoeirado. A cada coisa, se sentia seu tempo esquecido, em meio às tralhas que o presente transformara. Por fim, éramos nós próprios os cacaréus abandonados naquelas caixas. Éramos nós o pó aspirado pela respiração curta da Tia Gina, quem, realmente, acreditava nos resgatar dali.

Àquela altura estávamos apreensivos. Não porque guardássemos segredos em caixas de papelão, onde já se viu, mas porque não queríamos revirar o que se manteve intocado havia muito, simplesmente. E Tia Gina, com suas roupas de pavão, fala de galinha, corpo desengonçado, nos provocava, “quer queira, quer não”, disposta a inverter a ordem natural da nossa família.

A esposa de A. Almeida se escorou na hipótese de dissuadi-la sob os ditames de uma “cunhada/amiga”. Esforçou-se por alcançar o quarto dos fundos,  resfolegante e suada. Com um papelão em forma de leque, arriscou:

— Gi, meu bem… Esquece isso, boba… Vem ver lá co’a gente… Já começou… Diz que Estevão vai se vingar dos Gomide.

Tia Gina sacudiu os braços, irredutível. Jogou um não à redonda cunhada e voltou-se à pequena transgressão. Temos que convir que aquela pintada e desajeitada tia é deveras obstinada. Não que estivesse gostando de mexer naquelas caixas, entretanto, enxergava nisso sua missão. E cabia a nós aceitarmos resignados.

A caixa já estava quase vazia. Até que, sem qualquer aviso, Tia Gina soltou um grito fino, e jogou algo longe. Um objeto rachado e um pedaço de papel rasurado voaram por sobre a máquina de lavar. Ela fez uma cara azeda e dirigiu-se à cozinha com algumas lágrimas por se conter. Segurou-se na pia, branca e um pouco morta. A. Almeida que, como todos nós, ainda assistia à televisão, foi socorrer a irmã, sem conter algum meio sorriso de satisfação. Seus olhos não deixavam de pronunciar “eu te disse”. Consolou, contudo, a caçula inocente:

— Não se preocupe com a bagunça, Ginoca. Vamos colocar tudo na caixa de novo.

Ela quis se desculpar, mas permanecia afônica. O irmão espremeu os olhos e deu um passo à frente:

— Olha; a culpa não foi tua. — sorriu, já sem disfarces — é que é melhor não mexer naquilo lá, não é mesmo?

Tia Gina ganhou mais cor. Ele sorriu mais uma vez:

— Aprendeu a lição?… Então vem, Pintada… vem ver aquele… o tal do Estevão. — riu com vontade — não sei como vocês gostam disso.

Colorida novamente, Tia Gina foi ver televisão conosco. Nunca soubemos que objeto era aquele, até porque nunca tivemos qualquer interesse em entender o grito da Tia Gina. Estamos cientes de que pra tudo há uma razão de ser. E é inútil querer mudar isto. Ademais, temos mais o que fazer do que nos empenharmos em compreender os gritos histéricos da Tia Gina.

Se as caixas continuam no quarto dos fundos, perturbadoras e malcheirosas, que lá permaneçam. Continuamos nós com nossas vidas, incomodados, é verdade, mas alheios ao cheiro de mofo do que já passou. Pouco nos importa olhar pra trás. Além do que, “tempo é dinheiro”, como costuma dizer A. Almeida, com as mãos nos bolsos e o corpo cheio de verdade.

CONTO EXTRAÍDO DO LIVRO “MIND THE GAP” (EDITORA PATUÁ, 2011)

***

Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

Não há posts para exibir