[Leia também em espanhol]
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Aconteceu em El Santo, tradicional danceteria da cidade. Enquanto Jerónimo desfrutava e falava com seus amigos, ao ritmo da salsa, observava o local para ver se Tatiana chegava. Corpos suados, rostos alegres e puro sabor tropical… A temperatura em El Santo subia cada vez mais e ao som de “Brujería” do El Gran Combo de Puerto Rico[1], todos se regozijavam no oxigênio e excentricidade inatos. De repente Tatiana chegou e os olhos de Jerónimo se acenderam em chamas. Teve a sensação de que o volume da música abaixou, e tudo ao redor de Tatiana se via borrado enquanto ela brilhava. Havia eletricidade no ambiente, moléculas de ar quente estatelando-se umas nas outras em grande velocidade.
– Olá.
– Olá.
– O que achou da exposição?
– Foi boa. Um pouco lenta para começar e com muitos incidentes prévios, mas as pessoas fizeram bons comentários em geral.
– Sim, foi interessante a fusão entre elementos folclóricos com outros códigos como a dança contemporânea e o tecnológico.
– Concordo.
– É a primeira vez que vens a El Santo?
– Já tinha vindo uma vez antes, mas não sou muito boa dançando salsa.
Um meio sorriso, quase imperceptível e inconsciente, se vislumbrou no rosto de Jerónimo. Então se imaginou rebatendo uma bola de baseball para fora do estádio, imagem que vinha à sua cabeça frequentemente nos últimos meses. Havia chegado o momento de aplicar o velho truque do professor de salsa.
– Por isso não te preocupes, eu te ensino a dançar. Só tens que identificar o ritmo e seguir estes passos. Aqui dançamos desta forma em casais.
Enquanto os corpos de ambos se roçavam num êxtase sensorial a dançar, Jerónimo pensava em quanto caminho havia cortado em somente alguns segundos, e dava graças a Deus pela música do Caribe.
Seus olhares se juntaram, cinco centímetros separavam seus lábios. Tatiana sorriu e seu olhar dizia uma só coisa: beija-me agora. Contudo, Jerónimo não sentia a confiança suficiente para lançar-se ao vazio neste momento. Fracassar em frente de seus amigos, nunca.
A música terminou e houve um minuto de silêncio entre os dois.
– Vou pegar uma cerveja. Queres algo?
– Estou bem.
Enquanto Jerónimo comprava a cerveja, à distância procurou Tatiana com o olhar e estava no lugar exato no qual a havia deixado, falando com uma amiga. Parecia um desses dias em que o universo conspira para que tudo saia bem… Os astros estavam alinhados e Tatiana esperava-o.
Ao voltar, seguiram dançando e falando dos planos futuros a respeito dos estudos e da vida professional de cada um. Várias pessoas ao redor se aproximavam para escutar a conversa, ou lançavam uma olhada esporádica a ambos, como quem escuta um fragmento de algo interessante e quer ver os rostos dos interlocutores.
Então um grupo de duas loiras altas e uma morena se aproximaram e começaram a dançar justo ao lado deles. O olhar de Jerónimo começou a se dispersar, e o instinto territorial de Tatiana se ativou no mesmo instante.
– Me acompanhas ao segundo piso? Quero ver como está Clemencia.
– Evidente.
Tatiana liderou o caminho e não podia ver a Jerónimo, que a seguia, mas tinha um sorriso de orelha a orelha, pela conotação que lhe havia dado o que acabava de acontecer e pela evidente astúcia de Tatiana. Como não lhe havia ocorrido isolar o alvo?
No segundo piso, estava Clemencia com alguns dos artistas da exposição a que acabavam de assistir, antes de chegar a El Santo. Clemencia, ou “demência”, como Jerónimo lhe chamava sem que ela soubesse, ao vê-los sorriu de uma forma exagerada e postiça. Ambos se sentaram à mesa.
– Damos outra chance a esta música?
– Já viste que sou péssima.
– Não foi tá má, vais aprendendo, é fácil se praticares.
Os dois se levantaram e começaram a dançar neste dia, diferente de muitas outras vezes nas quais se lhe havia negado, Jerónimo teve uma segunda oportunidade. Ambos se olharam, Tatiana voltou a sorrir da mesma maneira, uma mescla de ternura e deboche, combinação digna dos poetas mais malditos de sua pátria. Então veio o beijo, que só pode ser descrito como a encarnação da paixão, o momento que ambos esperavam. Não voltaria a haver um beijo assim, no resto de sua relação.
– Voltamos a descer?
– Sim.
Outro beijo brilhante no primeiro piso, diante do trio de belas mulheres. Para que vissem quem mandavam ali. Muitos, conhecidos e desconhecidos, olhavam o casal com alegria. Acabavam de presenciar uma série de acontecimentos que os havia entretido. Onde não havia nada antes, agora havia algo. Foram testemunhas de um novo começo, e isto os enchia de felicidade. Tatiana, ao beijar, acariciava o cabelo de Jerónimo de forma sensual. Jerónimo fitou Tatiana direto em seus olhos azuis e perguntou:
– Vamos sair daqui?
Tatiana ficou em silêncio por quatro segundos.
– Vamos.
Jerónimo e Tatiana passavam o tempo juntos, numa curta viagem para fora da cidade com a desculpa de assistirem a uma Feira do Livro. Jerónimo não havia tido tempo de empacotar seu computador, portanto, Tatiana controlava a música onde se hospedavam. Ao fazê-lo, era evidente que tinha a tendência de mudar a música antes que tivesse terminado. Isto parecia irritante a Jerónimo, mas não expressava pois fazia pouco tempo que se haviam conhecido e não queria estragar a paz por um detalhe insignificante.
– O que pensas a respeito da igualdade dos gêneros e todo este assunto da liberação feminina e o sexo frágil? Acreditas que as mulheres são o sexo frágil?
– Acredito que intelectualmente as mulheres têm todas as ferramentas para ser iguais aos homens, mas quanto ao físico, o homem sempre será o sexo forte.
– O que tem a ver a força física? Sabes que o feminismo se baseia na igualdade de direitos, e que não passa pelas óbvias diferenças biológicas de cada gênero.
– O que vou dizer é mais uma teoria pessoal. Não investiguei a fundo a respeito, mas creio que a superioridade física está na base da dominação masculina através dos tempos.
– Sim, talvez no princípio dos tempos, mas agora é irrelevante. De todas as formas, se eu quisesse, podia fazer muito exercício e ter músculos grandes.
– Verdade, mas a melhor atleta em qualquer esporte nunca superará ao melhor atleta no mesmo esporte, os jogos olímpicos são prova disso.
– Sim, isso é verdade.
De um momento para o outro, Tatiana se pôs mais coquete. A conversa de dominação e superioridade física a havia acendido e foi ela quem tomou a iniciativa, o que era incomum.
O som de rochas num riacho. O corpo submerso no mar enquanto milhões de sardinhas dançam ao redor. Fogos artificiais à meia noite. Um soldado romano que da sua carroça chicoteia o cavalo. Um aguaceiro sobre o corpo em meio ao bosque. Uma cowgirl que pratica em um touro mecânico. Vênus e Mercúrio, amando-se nas nuvens. A erupção de um vulcão. A ilusão de eternidade, de que és imortal. Multiplicar o medo da morte por zero.
Tatiana dormia e Jerónimo pensava, a lua estava cheia e se podia ver perfeita através das cortinas branca e da janela aberta. Um vento fresco entrava e dava vida às cortinas e a luz da lua outorgava claridade à habitação. Pensava em tudo que já havia conversado com esta mulher, no pouco tempo que a havia conhecido. As conversas eram sobre tudo: sistema econômico, política, ciência e religião, arte, literatura, desenvolvimento humanitário, cinema, história, música, etecetera, etecetera. Também falavam de temas pessoais relacionados à família, amigos, viagens, experiências e ainda mais.
Ela falava com autoridade, segurança e convicção acerca de cada um destes temas. Explicava um modelo econômico e outro, ou uma corrente política e outra, e registrava sua posição com absoluta lucidez e eloquência, num idioma que não era dela. Falava de sexo sem uma gota de culpa católica, sobretudo por não ser católica. O símbolo vivo da liberdade, da mulher moderna e da igualdade de gênero, tema ao qual se dedicava de maneira ativa. Era uma relação diferente de qualquer outra que Jerónimo havia tido e ainda que essas diferenças eram o que lhe interessava, eram o ingrediente que a tornava imprescindível. De uma forma ou de outra, sabia que tinha que manejar bem a situação para que seu ego masculino não ficasse ferido com tanta independência e com sua natureza competitiva. Também sabia que falar é muito mais fácil que aplicar. Um desastre era eminente.
Ambos esperavam a cena num restaurante de frutos do mar, enquanto tomavam uma taça de vinho. Alguns acontecimentos recentes na vida de Jerónimo lhe incomodavam, mas não queria falar sobre isso sem dar-se conta que estava tomando o vinho mais rápido do que dava conta. Ambos tinham planos para depois, que não haviam contado um ao outro. Jerónimo queria ir a uma reunião na casa de seus amigos e Tatiana queria ir a uma festa na casa de suas amigas.
Quando Tatiana notou que o assunto da conversa de Jerónimo se dirigia para que ela o acompanhasse até seus amigos, cortou o fluxo das palavras ao dizer: eu tenho uma festa na casa de minhas amigas. Por alguma razão, algo tão simples incomodou a Jerónimo. Ele queria que Tatiana o acompanhasse, mas ela não parecia disposta a ceder. O que começou como uma conversa sobre possessão e independência, de repente se tornou em um tópico mais profundo acerca do egoísmo, falta de empatia, frialdade e feminismo extremo de Tatiana.
Nenhum dos truques para tentar fazer com que cedesse a seus desejos funcionou, o que faziam era enfurece-la mais. Se foi a sua festa e deixou Jerónimo só… Nada podia ser mais frustrante para ele. Foi nesse momento que se deu conta de que nunca alcançaria tê-la da maneira que queria, e que estava, pela primeira vez em sua vida, na posição de quem tinha tudo a perder.
No dia seguinte, o imenso peso da culpa amanheceu sobre os ombros de Jerónimo. Havia exposto as contradições de sua personalidade e vários dos fantasmas que o espreitavam. Pediu perdão de mil maneiras e por ser a única vez que algo assim aconteceu, ela o perdoou, mas nada seria igual a partir dali. A personalidade dela era paradoxal pois ainda que sentira a profunda necessidade de intimidade, apenas percebia a mínima ameaça a sua apreciada liberdade e se sentia asfixiada.
Embora o tinha perdoado, ela não acreditava em eventos isolados e a mostra de possessividade e insegurança de Jerónimo havia feito com que sua primavera acabasse antes do tempo. Desde esse momento estaria muito mais atenta às falhas de Jerónimo e ele começaria a perceber a relação com um constante desafio, pois falhas Jerónimo tinha, e o olfato de Tatiana para estas era fino e assertivo.
Ela não estava isenta destas também, sua ansiedade, ocasional complexo de inferioridade e espírito mutável e inconformista as vezes a punha num estado de ânimo lamentável. Também era bastante negligente com suas tarefas domésticas e seu apartamento era uma alusão aos tempos da peste bubônica, mas a Jerónimo não lhe importava. Cumpria com suas normas mais significativas e todo o demais para ele era trabalhável.
Na noite antes do final, ambos iam ao cinema ver a adaptação cinematográfica de “Memórias de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez. Ao chegar ao apartamento de Jerónimo, faziam amor, ou algo próximo, mais vezes e com mais ímpeto e selvageria que outras. Num momento da noite Tatiana disse: estou feliz, gosto de estar aqui, podia ficar por muito tempo. E Jerónimo lhe disse: aqui sempre serás bem-vinda.
Apenas a lancha arrancou, a nuvem que estava tapando o sol se foi afastando gradualmente. Os raios saíram com mais potência e das vinte e cinco pessoas que havia em meio dessa festa no mar do Caribe, vários pegaram seus óculos de sol, bronzeadores e bloqueadores. O licor era abundante: aguardente, tequila, whiskey. Os ritmos não tinham nada a ver um com o outro: música eletrônica, reggaeton, vallenato[2]. Mas isso era o de menos, ambos estavam passando bem, o ambiente era de filme e o ânimo de todos voava. Um momento, ao ver a regularidade constante com que serviam os tragos Jerónimo disse:
– Me conheço e sei que devo tomar mais devagar pois depois acabo mal.
Mas uma vez mais, foi mais fácil dizê-lo do que fazê-lo e em menos tempo do que Michael Phelps nada em uma piscina olímpica: Hello, Mr. Hyde! Quando acordou no hotel sem noiva, Jerónimo tinha uma dor de cabeça enorme e não lembrava com exatidão as últimas 5 horas de sua vida. Imagens de choros, carteiras voando, e gritos em meio ao lobby do hotel vinham à cabeça de maneira aleatória.
Depois disso não havia volta. Tatiana se sentia humilhada, preferia não viver isso nunca em sua vida e a remota possibilidade de voltar a viver era impensável. Embora a frase Shakespeare que tinha tatuada fazia referência ao amor imutável apesar das tormentas, esta tormenta não estava disposta a padecer. Jerónimo sabia que a desculpa do excesso do licor estava gasta, mas de todos os contra-argumentos que Tatiana utilizou para truncar sua intenção de reconciliação, um lhe doía mais:
– Te expressas bem, mas não é o suficiente.
Dizer isso a Jerónimo era como despojar um cavaleiro de sua armadura, roubar sua espada e cortar sua cabeça. Após o acontecimento, ele sabia o que faria, mas por vários dias sua natureza pensativa o levaria a relembrar o começo de tudo. De como liam poesia em voz alta, do belo e inteligente que é e de como lhe inspirava cercar-se da perfeição. Isso o levou a imaginar as pessoas que ambos teriam se convertido se houvessem continuado e em todas as surpresas de seu interior que queria ensiná-la.
Mas ela não queria nada mais e seu temperamento autônomo a levava a seguir se divertindo num país diferente. Ironicamente, depois de tudo e quando o tempo foi correto, a amizade entre ambos fluiu muito melhor que a relação sentimental. Na realidade Tatiana era uma melhor amiga que parceira, pois uma amizade não a amarrava da mesma forma que uma relação e aos amigos lhe perdoava os defeitos com mais facilidade.
Nele ficaria a gana de ler mais a Marx, a Nietzsche e a Jung, a cátedra contra o machismo, um novo interesse por esses temas, uma renovada apreciação por sua própria liberdade, a certeza de que com um amor genuíno seria invencível e a esperança que alguém mais lhe conquistaria tanto a cabeça como o coração. A ela ficariam os longos abraços e a autêntica ternura, lembrar a importância de trabalhar no que te apaixona, e uma tentativa de obra de arte. Apesar dos problemas, ambos terminaram da maneira mais educada da história e sabendo que haviam vivido algo se não inesquecível, ao menos único.
[1] Grupo musical de Porto Rico que toca Salsa.
[2] Ritmo originário da costa caribenha da Colômbia.
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Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.