Conto: Celebração

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celebracoes_capaEle andava de um lado para o outro, ansioso. Não conseguia saber ao certo se estaria pronto para cumprir a missão do dia. Ou a missão da vida. Pedro, quando estava prestes a vê-la, suava muito no buço e nas mãos, de forma que um lenço era o terceiro componente de todas as conversas que incluíam Ivy.

– Pra que eu fui aceitar fazer isso? – ele continuava se perguntando, andando de um lado para o outro dentro do recinto. Sentia o coração se digladiar contra ele dentro do peito, tal como dissesse “Tá vendo o que eu faço com você? Toma mais essa agora!” – Sério, o que estava passando na minha cabeça, além da palavra “sim”?

A voz dentro da cabeça dele, o grilo falante com quem ele dialogava enquanto estava sozinho, respondia:

– Seja firme. Vai ser fácil: 40 minutos, fale o que tem para falar, dê os parabéns e simplesmente volte para casa.

40 minutos. Olhando. Pensando. E ainda tendo que falar.

– Pedro? – apareceu o pai dela na porta do recinto. Não chegou a notar o descabelo do jovem rapaz de cabelos cor de trigo. Mesmo por que, o pai dela nunca notava nada mesmo. – Está pronto?

– Claro, Cláudio. Prontíssimo.

– A Ivy já deve estar para chegar. – isso não era uma boa notícia. O coração deu mais um chute, como se tentasse sair do peito dele na marra. “Eu não quero fazer parte disso. Alguém tem que ter dó de mim, nem que não seja você!” dizia seu coração, indignado. “Já não passei tudo o que tinha que passar? Mais essa é demais!”

– Estou à disposição. – Cláudio sacudiu o bigodão de nicotina e saiu. Pedro ficou tão abatido que simplesmente se deixou cair na poltrona. – Eu não vou conseguir fazer isso.

Ivy e Pedro eram amigos de infância. E desde que ela tinha se mudado para a casa ao lado, Pedro sabia que ela era uma semente que ia florescer nos seus pensamentos e fincar as raízes no seu coração. Por mais brega e fora de moda que isso possa parecer. Ele sempre tinha sido uma criança sensitiva e perspicaz. Tanto que, com o passar do tempo, podia sentir como ela estava simplesmente por ouvir seus passos ou subir os degraus da pequena escada em frente à porta de sua casa. Eram só três. Se ela subisse o primeiro de forma quase inaudível, podia ser raiva ou empolgação. Se os dois degraus seguintes fossem inaudíveis também, era empolgação. Se fossem extremamente audíveis, era raiva. Se todos fossem pesados, era cansaço. E, na tristeza, ela se sentava antes de entrar em casa.

Ivy tinha um jeitinho misterioso, no sentido de que por mais que se conhecessem, sempre haveria algo escondido debaixo do olhar dela. Isso, desde menina. Ivy era um poço com fundo desconhecido. Tinha um talento típico: desenhar. Sentava debaixo da árvore do quintal da casa dela e ficava horas desenhando em uma pasta tamanho A3, de couro envelhecido. Por vezes, Pedro ficava observando ela desenhar. Se perguntava que tanto era que ela desenhava, mas ela nunca deixou que ele visse o conteúdo daquela pasta em específico.

Divertiam-se juntos. Corriam, brincavam e eram absolutamente inseparáveis. Ninguém conseguia compreender tamanha ligação em uma faixa etária em que meninos e meninas, tipicamente, se enfrentam e se afastam.

Foi quando ela encontrou o primeiro namorado. Nem foi cedo. Tinha seus 16 anos e a família dela deu saltos enormes de alegria, porque, com aquele jeito moleca, sempre de tênis, jeans e camisetão (tinha um do Pluto, que não dava por dinheiro algum nem em troca de nada) eles temiam que ela nunca fosse achar alguém que se interessasse.

Pedro, sinceramente, achou que alguém tinha arrancado uma víscera sua, num processo estranho de quase depilação, quando ele ouviu o nome “Senna”. Chamava Senna em homenagem ao piloto. Senna era bonito, gente boa e, para desespero geral, parecia gostar de verdade de Ivy. Era gentil. Um verdadeiro cavalheiro.

Foi uma fase difícil. Pedro, por vezes, se via tendo pensamentos em que Senna agredia Ivy. E ela, infeliz se separava dele. Obsessivo, no mínimo. Se sentia mal por desejar aquilo, mas estava para enlouquecer de tanta tristeza com aquele relacionamento bem-sucedido. Ninguém poderia gostar mais dela do que Pedro. Mas Senna, ele admitia, poderia ser vice-campeão daquela brincadeira, com toda a certeza.

Como pode se imaginar, tomou um porre ou dois para esquecer daquilo. Talvez mais. Um dia disse ao seu pai que bebia para ver se o fígado inchado como pretendia que ficasse preenchido o espaço que tinha sido tirado de dentro dele quando ‘ela’ – sem revelar o nome, como todo platônico – tinha começado a namorar.

Dramático. Mas deixou o pai satisfeito, primeiro, por confirmar que não era gay. (Imagine você que Pedro nunca tinha namorado aos 18 anos. Claro que o pai ia desconfiar e, na idade que tinha, ia temer também). E, segundo, porque o rapaz estava estudando biologia no fim das contas para, bêbado, falar de fígado inchado e coisas do tipo.

Nessa toada, Ivy e Pedro levaram sua amizade. Ivy nunca passou um dia sem abrir o sorriso enorme que tinha para Pedro. Embora ele desejasse que ela desaparecesse e desse uma folga pra ele, que estava sempre com ela de uma forma ou de outra, 24 horas por dia.

Seria desnecessário comentar que ela nunca disse uma palavra. Nos porres, limitou-se a rir dele, porque ela conseguia beber barris de uísque puro sem sequer trocar letras em um trava línguas. Nas tristezas, limitou-se a fazer caricaturas de professores engraçados que eles tinham em comum, garantindo gargalhadas intensas, quando, por exemplo, desenhou um professor gordinho e bigodudo em forma de morsa.

Embora a dor fosse diminuindo ou dando pequenas tréguas com o passar do tempo, o fato era que o relacionamento entre Senna e Ivy parecia cada vez mais promissor.  E até com notícias ruins, passado certo tempo, somos capazes de nos acostumarmos. E não foi diferente com Pedro. Um ano, um ano e meio, dois anos. Muito se passou. Pedro escolheu se adaptar àquela situação e acabou conhecendo Senna melhor. Bom rapaz, tinha de se assumir. Tratava seu amor bem. Era gentil, educado e devidamente comedido em sua demonstração de paixão. Talvez por que notasse que Pedro suava de nervoso perto de Ivy, talvez porque, ao contrário de boa parte das pessoas, tivesse notado que Pedro, aos 20 anos, não só não tinha namorada, porque, alegava ele, o trabalho não permitia, mas simplesmente nunca tinha cogitado na vida ter uma. O fato é que a convivência ora turbulenta tornou-se pacífica a ponto de, com certa frequência, eles saírem juntos para passeios de amigos.

E, como você sabe, o destino parece esperar que algumas feridas pareçam melhores para que ele as abra novamente e mostre que tudo ainda é a mesma coisa de sempre, só ignorado.

– Pedrinho – ela disse, na ocasião, com um sorriso. Tinha passado tanto tempo, que, de fato, aquele rombo mal parecia um arranhão, olhado de fora. – Eu tenho uma novidade pra te contar.

Ele não estremeceu. Sua sensitividade lhe faltara naquele momento.

– Ah, é? Põe pra fora, então.

– Eu vou casar. – o pior de ouvir essa frase, foi ouvir com aquele sorriso.

A dor foi tanta que Pedro desmaiou.

Depois, foram ver, foi algo próximo de uma parada cardíaca. Ninguém sabia por quê.

Disseram ser stress.

Ele sabia bem a causa, mas não orientou nenhum médico.

Quando acordou, no hospital, ela estava do seu lado, com o rosto cheio de pintinhas vermelhas, quase como sardas, por causa do choro.

– Que susto.

– Ah, muito trabalho.

– Você fica horas sem comer nada, eu aposto.

– Não é nada demais. Estou bem já. Pode continuar de onde parou. – ele disse, enquanto seu coração brigava com ele. “Tá surdo? Não deu pra entender que eu preciso de uma folga?” dizia. E Pedro só fazia de conta que não era com ele.

– Eu queria te pedir uma coisa.

E foi assim que chegaram naquele dia.

Ele chegou a perguntar durante todo o processo:

– Ivy, você o ama de verdade? É ele mesmo que você quer pelo resto da sua vida? – era cruel perguntar aquilo tantas vezes quanto ele perguntou. Mas precisava saber se era ele quem ia fazê-la feliz. Se ela via nele a sua alma gêmea. Por que, se não visse, não importava o quanto Senna fosse uma boa pessoa e, por isso, merecesse ser feliz com ela; ia ter que encontrar outra pessoa com quem formar sua família. A Ivy era dado o poder absoluto de escolha e decisão, mesmo que isso fizesse o resto do mundo sofrer. Ou era algo que Pedro conferia a ela e só.

Enigmática, ela dava de ombros, colocava os óculos de sol e respondia:

– Pedrinho, pro resto da vida é muito tempo né? Da minha visão de resto da vida, provavelmente é ele. Mas é que o pra sempre está sempre longe demais. Você sabe o que eu quero dizer, não sabe?

Não dava pra ter certeza.

Pedro sabia que ela jamais se casaria com alguém, se não gostasse. Provavelmente aquilo era só o jeito dela de manter o mistério das coisas. Assim como ela escondia alguns desenhos que fazia até mesmo da mãe.

A única pessoa que tinha considerado que poderia ter um caroço debaixo de um manjar tão perfeito foi a pessoa mais egoísta de todas: o pai de Ivy.

Era um velho meio turrão, que raramente conseguia se preocupar com os outros. Não era por falta de amor ou tentativa; só não entendia as necessidades das outras pessoas. Era quase um autista emocional, se é que você me entende. Nunca tinha sido presente e raramente perguntava da vida dos outros com real interesse. Não era arrogante, pretensioso ou mau. Só distante emocionalmente.

Daí o choque.

– Pedro, vem cá… Essa história toda de casamento… bom… você e ela são um grude enorme desde os oito anos. – dava pra saber o rumo da conversa. Sabendo que não sabia mentir, Pedro tentou mudar o assunto.

– É uma emoção única poder participar como eu estou participando deste…

– Calma aí, rapaz. Eu já chego na minha pergunta. É que, bom, durante 15 anos, tudo que eu vejo é você do lado da minha filha. Nos últimos cinco ou seis – eram sete – tem o Senna também, menino ótimo o Senna, mas minha pergunta é… você não tem vontade de estar no lugar dele?

– Se eu quisesse, o senhor acha que eu estaria na posição que estou agora? – jogo das perguntas. Uma boa maneira de fugir da sinceridade.

– Sinceramente? Tenho absoluta certeza que sim. Sabe, quando você tinha uns nove anos, ficou doente semanas de vontade de comer uma fruta que tinha no quintal de casa. Só por não querer pedir. Então nada desse tipo me surpreenderia, não vindo de você.

– Não se preocupe. Está tudo bem, seu Cláudio. O casamento…

– Vai acontecer, eu sei disso. Só quis conferir se era isso mesmo que você queria. Mas nem comentei isso com ninguém, por que, se eu desse essa ideia pra minha filha, era muitíssimo provável que ela gargalhasse na minha cara.

Ah, mas que consolador ele era. Pedro quase riu, sarcástico. Mas se manteve impassível.

– Sabe o que é, filho? Você podia até tomar uma bronca daquela vez por querer a fruta do vizinho. Mas é que sem pedir, nunca dá pra saber.

– Entendi.

– Não vá ficar meses querendo uma fruta. No fim, pode ser que ela estrague. Tudo tem um tempo. Inclusive o tempo de deixar de querer alguma coisa. Então, em algum momento, todos nós temos que decidir entre pedir a fruta ou simplesmente aceitar que não vamos comê-la. Só não dá pra ficar ali, vendo ela estragar, vendo outros provarem. Isso mata, sabe? Ou quer, pede e tenta provar ou esquece e vai procurar outra coisa. Entende o que eu quero dizer? Ficar olhando o pomar não mata a fome de ninguém.

Pedro só fazia que sim, completamente pego de surpresa pelo papo. Ainda mais vindo de quem vinha.

Mas sabendo muito bem o seu lugar de amigo que, se mencionasse uma possibilidade de sentimento romântico, causaria gargalhada, nada fez.

E por isso, continuou só olhando sua fruta.

Pedro andava de um lado para o outro de novo, tenso. Casamento dela e ele ali. Tantas coisas que ele podia ter inventado e dito, mas não. Tinha aceitado. Agora não dava mais pra voltar atrás.

“Como se você fosse fazer isso, de qualquer forma.” Ele ouvia a voz dizer. “Faça o que veio fazer. Cumpra esta missão e faça ela feliz. É só isso.”

Assim que este pensamento lhe cruzou a cabeça, ele olhou pra trás e ali estava ela. Cabelo muito, muito claro e cinzento, quase igual ao dele. Na infância, eles brincavam de se passar por irmãos, por causa da semelhança entre eles. Tinham os mesmos olhos cinzentos também. E as mesmas bochechas coradas. Só o nariz arrebitadinho dela que era diferente do dele.

E agora, de noiva, com um vestido cheio de detalhes que só a imaginação dela podia ter pensado, ela estava parada na frente dele.

Quase que ele teve outro ataque cardíaco.

Mas conseguiu se conter, porque sabia da sua missão.

– Pedrinho, está pronto?

– Claro. Estava me concentrando. E você? Veio aqui primeiro por que?

– É que eu queria te dar uma coisa.

Ela tirou da sacola que ele nem tinha visto que ela carregava aquela pasta de couro envelhecido. Estava muito pesada, muito cheia.

– É pra você. Todos os desenhos que eu mantive escondidos durante todos esses anos. Fiquei com vergonha de levá-los pra minha casa e… Bom, a única pessoa que eu confio o suficiente para vê-los é você. Ninguém é melhor do que você no mundo. Então ninguém poderia, além de você, ficar com eles.

Ela deu outro sorriso enigmático, mas um sorriso diferente.

Ele já ia abrindo pasta, quando ela colocou a mão em cima, fechando a pasta.

– Tem problema se você olhar só depois do casamento?

Ele achou estranho.

– Por quê?

Ela deu aquela sacudida de ombros e outro sorriso daqueles.

– Você vai entender quando olhar. Caso você não entenda, tem um bilhetinho meu, também.

Pedro só fez que sim.

– Não vai colocar sua batina?

Ele nem tinha reparado que ainda não estava pronto.

– Vou, sim. Coloquei pra terminar de secar na janela da sacristia.

Ela assentiu. E suspirou.

– O Senna tá atrasado. Vou entrar de novo no carro, pra esperar. Entrei aqui pelos fundos, ninguém me viu e daqui a pouco entra alguém aqui pra conhecer você, o padre mais novo do universo e meu amigo de infância… Melhor eu ir.

Ele fez que sim, se aproximou da amiga e se inclinou consideravelmente para dar um beijo na testa dela. E depois assistiu enquanto ela saía da sala.

A decisão de se tornar padre veio logo depois do terceiro porre. Ele sabia que, no ritmo que ia levando, ia ter problemas sérios a curto prazo. Então arranjou outra coisa com a qual se ocupar: sua religião.

Muitos protestos. Ivy, na época vivendo uma época agnóstica, dizia que estava dedicando sua vida a algo que não existia. Ele não podia dizer que era melhor, talvez, isso, do que continuar a se dedicar a algo que ele sabia que existia, mas que dificilmente iria leva-lo a qualquer lugar.

Nunca tinha sido extremamente religioso, mas se dedicou àquela empreitada como uma missão de vida ou morte. Sabia que só o isolamento, junto com o direcionamento, era capaz de tornar aquele sentimento uma coisa boa. Fez isso, principalmente, por medo de que virasse qualquer coisa ruim contra ela. Ele a amava tanto que preferia sofrer a sentir qualquer coisa mais amena por ela, mesmo que isso fosse para aliviar seu sofrimento. Preferia conviver com aquilo pra sempre a assistir a ele mesmo se tornando indiferente a ela.

– Ela é tão espetacular – disse ele, uma vez, a um grande amigo que conheceu no seminário – que o mundo inteiro devia ser obrigado a sentir coisas intensas por ela, amor intenso, admiração intensa, ódio intenso, o que quer que seja. Se tem uma coisa que ela não merece é indiferença.

Claro, essas observações deixavam a maioria das pessoas de cabelos em pé. Muita gente tinha medo daquele sentimento dele. “Isso é coisa de infância, você precisa deixar passar” ou ainda “Prefiro nada disso a qualquer coisa como isso”. E a resposta dele vinha serena e muito confiante.

– Eu prefiro tudo isso a nada dela. Não é o amor que causa sofrimento. Se você gosta de alguém e está sofrendo, este é um problema seu. Ela só nasceu do jeito que é. Fui eu quem me apaixonei, desde que ela desceu daquele caminhão de mudança, usando uma bermudinha florida e uma regata cinza manchada de molho de tomate. Então quem tem que se virar com isso sou eu.

O seminário foi que foi até que ele já podia celebrar casamentos e todas as outras cerimônias desde que acompanhado por um padre. Ivy, com Pedro ainda no hospital, pediu que fosse ele o padre do seu casamento. Parecia muito lógico que quem a acompanhou durante a vida toda estivesse ali. Se não fosse um “quase-padre”, como ele costumava ser chamado por ela, seria o padrinho. Mas já que era, podia e devia celebrar o casamento.

A ironia.

Pedro repassou o momento em que disse “Sim, claro que eu celebro seu casamento.” ainda no hospital, sentiu de novo a mesma dor – que nada tinha de metafórica e era cem por cento física – esticou as pernas e foi pegar a batina.

Deu uma última olhada naquela pasta marrom e tentou entender o presente. Ia abrir, mas ficou com receio de perder o foco, vestiu a batina e foi para o altar.

Senna tinha acabado de chegar. Era bem galã hollywoodiano, com o cabelo impecável e o terno de caimento perfeito. Tinha nome e jeito de herói. Tinha sido moldado para cuidar para sempre de Ivy.

Pedro quis mandar tudo à merda ali. Tudo mesmo. Quis tacar fogo na batina, raptar e noiva e mijar no sapato italiano do noivo. O cenário foi tão confortável que seu coração fez as pazes com ele por um minuto. “Vamos lá, eu bem que tô merecendo um presentinho. São quase duas décadas de sofrimento.”

Mas aí a banda começou a tocar anunciando a entrada da noiva. E ela de braço dado com Cláudio, sorrindo e acenando, foi motivo suficiente para que ele entendesse que o papel dele ali era outro. Ele era coadjuvante.

Tomou um copo cheio de água, que manteve a garganta seca do mesmo jeito, ajeitou o microfone e olhou para Senna, sorrindo para a noiva.

Sim, ele gostaria de estar no lugar dele. Mas já que não estava, tinha que focar.

Começou o discurso falando sobre a importância de todo amor ser pra sempre, sobre como aquele compromisso devia ser levado a sério. Continuou, falando sobre como somente a plenitude do sentimento mais puro criado por Deus era capaz de dar a real felicidade ao homem. Passou, aqui, menos confiança. Alguém que ama a vida toda e nunca sente a felicidade da reciprocidade deste sentimento não pode achar que o amor é a obra suprema de Deus.

Começou o juramento e seu coração deixou de lutar. “Eu desisto. Você gosta de sentir essa coisa maluca e completamente distorcida que você sente por ela. Ou faz alguma coisa ou se livra disso, por favor. Mais um pouco e eu entro em greve.”

Troca das alianças e cumprimento das famílias. Foi cumprimentado por ela, que deu um abraço forte nele, muito, muito forte e um suspiro significativo, olhando pra ele e fazendo-lhe um carinho no rosto. Ele sorriu de volta, como um gato acariciado pelo dono.

Então veio Senna, que também lhe abraçou com vontade. Mas não suspirou nem fez carinho. Só disse “Prometo que cuido bem dela.” Pedro compreendeu ali que Senna sempre soube. E, modelo de perfeição feito como era, nunca criou situações constrangedoras nem exigiu afastamento. Pedro sorriu constrangido e disse um significativo “Obrigado”.

A cerimônia acabou, por fim, com um beijo cinematográfico na frente do padre. Iam todos para a festa e Pedro tinha inventado uma desculpa para não comparecer. Pelo menos disso ele poderia se poupar.

O fotógrafo chegou, bateu uma foto de Ivy com Pedro, abraçados, uma com Senna junto e então foram todos liberados. Todo mundo pronto pra tirar a gravata e comemorar. Pedro só buscou o silêncio de sua sacristia, que ainda nem era sua. Ficou deitado, cochilando um pouco na poltrona. Quando acordou de leve para o mundo de novo, olhou ao redor e viu a pasta. Esticou o braço comprido e ficou olhando pra ela, no seu colo, por alguns segundos antes de abrir.

Começou a ver os desenhos ignorando o envelopinho azul royal – cor favorita de Ivy – no cantinho. Eram desenhos dele.

Ele, aos nove anos, subindo na árvore. Ele, dentro da cabana que ficava no quintal de trás da casa. Ele brincando com o cachorro. Ele vestido de pirata para a festa fantasia no clube, aos doze anos. Ele apoiado na cerca, olhando pra ela escondido, com uns treze. Ele, sentado do lado dela, lendo um livro enquanto ela desenhava. Ele, comendo uma pera.

Tinha mais de cinquenta desenhos impecáveis. Todos dele.

Pedro olhou um por um e sabia dizer exatamente quando tinham sido feitos, embora nunca pudesse desconfiar que aquela pasta era basicamente feita dele.

Olhou o envelopinho, que era pequeno e parecia que ia explodir a qualquer momento de tão cheio. Pegou a carta de dentro, fechou a pasta e começou a ler a caligrafia não-seriada que estava no papel sulfite azul.

“Pedrinho,

Sei que você, obediente como é, só está lendo esta carta depois de ter visto todos os cinquenta e sete desenhos que compõem esta pasta. Não se sinta previsível. Você não é. E mesmo que fosse, ser previsível não é ruim. É o fato de podermos prever as reações das pessoas que nos dá a sensação de familiaridade. E é isso que você é pra mim, mais do que tudo: familiar.

Imagino sua cara de ponto de interrogação vendo esse monte de desenhos – alguns bem ruins, eu sei – de você, em toda a sua vida. Também creio que você conheça esta pasta e lembre que eu nunca deixei ninguém chegar perto dela.

Mas a verdade é que eu observei você a minha vida toda. Sempre te achei a pessoa mais cativante e sensível dentre todas as que eu conheci. E, pra ser sincera, nunca soube precisar exatamente o que eu sinto por você. Sei que é bem diferente do que sinto pelo Senna, já que minha admiração por você é muito maior; muito diferente do que sinto pelo meu irmão, já que você me irrita muito menos; e extremamente diferente do meu pai, já que você se preocupa comigo de forma muito mais honesta e desprendida e faz com que eu me preocupe com você de forma proporcional.

Seja lá o que isso seja, Pedrinho, o que sinto por você é, sem dúvida, o que sinto de mais bonito por alguém. É eterno e intocável e eu sei que nunca vai desaparecer. Na minha vida maluca e cheia de altos e baixos, a minha única constante sempre foi saber que você sempre estaria ali e que, enquanto estivesse, eu estaria bem. Nunca disse isso pra você, embora tenha tentado demonstrar do meu jeito desde que desci daquele caminhão de mudança.

Só semana passada, fazendo a mudança, e pensando no que fazer com esta pasta que seria tão incompreensível para o resto do mundo que percebi que não é isso que eu quero pra você. Não quero você, sentadinho do meu lado, vestido de padre pra sempre. Você, do meu lado, sim. Só não geograficamente falando. Ficar do meu lado é muito pouco pra alguém como você. E se ninguém te diz isso, acho que talvez eu que tenha que pontuar. Você não nasceu pra isso. Você não nasceu pra ser o que você é hoje.

Se o que eu escrevi aqui tiver qualquer impacto pra você, quero pedir que você se permita viver. Queime essa batina. Você nunca vai me convencer que é feliz com essa escolha que você fez e, sinceramente, eu não sei do que você se esconde. Mas não pode ser tão difícil de superar. Repito: você não nasceu pra isso.

Talvez eu nem devesse estar te falando tudo isso. Mas é você. E se é por você, eu me arrisco um pouco e corro o risco de ser mal interpretada.

Sobre os desenhos. Bom, compõem um resumo da atividade mais frequente da minha vida e da pessoa mais importante que Deus – que engraçado eu falando de Deus, não é? – colocou no meu caminho.

Guarde, veja, enquadre, jogue fora. Faça o que quiser. Foram feitos pensando em você. E finalmente encontraram seu dono real.”

Pedro leu a carta várias vezes, permitindo que as lágrimas caíssem. Era no mínimo desconcertante. Viu os desenhos, leu a carta. De novo e de novo. E pensou.

Ivy e ele estavam, inevitavelmente, unidos pra sempre. Não da forma convencional, mas aquela carta fez com que ele percebesse que Ivy sempre seria dele de alguma forma. Ele tinha conseguido o que nem Senna teria. Tinha chegado onde ninguém mais chegaria. E aquilo, sim, representou um conforto que ele nunca tinha sentido antes.

Para alguém tão platônico como ele, saber que, no plano das ideias eles eram mais unidos do que qualquer coisa real e concreta representou uma semente de felicidade.

Ivy sempre seria dele. Não importava de quem ela fosse.

Pegou suas coisas, a pasta, e foi para a praça atrás da igreja. Passou na padaria, comprou uma cerveja e uma caixa de fósforos.

Ele era, de fato, muito obediente.

Acendeu um fósforo e ficou olhando a batina queimar.

Quando tudo eram cinzas, ele pensou de novo na carta. Pensou em tudo o que poderia ter acontecido nos últimos 15 ou 16 anos. Pensou em tudo o que não tinha sido. E pensou em tudo o que teria que ser.

Levantou-se e começou a caminhar. Não sabia pra onde ia.

Mas sempre tinha sido muito obediente. E sabia que fazer o que ela tinha dito ia dar certo de uma forma ou de outra.

***

Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

 

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