Conto: Certas Homenagens

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Certas homenagens

Às dezessete horas e menos cinco minutos, sozinho no escritório superlotado de coisas inúteis, de onde você tira o ganha pão (com grande penar, é claro), você irá se levantar de sua cadeira estacionada a um canto, ensopada de suor, e irá olhar o próprio reflexo na porta de vidro e verá em seu rosto uma tristeza de gol contra – se assustará em perceber que nem mais os próprios traços da face lhes são familiares, embora os tenha visto infinitas vezes. A essa altura, uma espécie de certeza fria deve ter se infiltrado em suas esperanças quentes. Mas, como num filme do Tinto Brass, você irá receber a visita inusitada de uma mulher vestida com hábito religioso, traços jovens, rosto fino, mãos delicadas e olhar penetrante que soprará em seu ouvido coisas descabidas. Aí irá lembrar-se com prazer do vício solitário da infância, de render certas homenagens (vício, condenado por severos escribas, em que essa mesma mulher era o seu objeto preferido, mas em roupas de outra Ordem, é claro). E aí, como num passe de mágica, num ato de extremada rebeldia ou de loucura, como decerto dirão alguns, você irá abrir mão da sua parcela na exploração da miséria alheia (não bastando ser contra ela, apenas) e não mais aceitará a servir aos desmandos e ao jugo da vontade dos outros (esta, que desde cedo você aprendeu ser uma das mais fundamentais leis da sobrevivência). Então, assim, como um louco que se antecipa ao porvir: faça uma careta, revire os olhos, precipite a língua para fora, faça com ela movimentos circulares e, depois, guarde-a devidamente no lugar. Ponha-se em pêlo, libertando os pés do tênis (confeccionado através da exploração do trabalho escravo infantil, lá em algum lugar do globo, onde você jamais sonhou em pisar) e o corpo das vestes como se tirasse o peso das coisas. Saia pela porta pela qual nunca deveria ter entrado. Sim, do lado de fora haverá aqueles de coração corrompido e fachada puritana que irão olhar a sua nudez com olhos de vergonha. Ignore-os. Haverá também outros: cavalos amansados atrelados à missão – felizes apenas em seguir sem sentir arder no lombo a fúria dum chicote. Ignore-os, também. Em praça pública, numa Ágora improvisada: grite, proclame um manifesto a favor da palpitação sublime da vida naquilo que ela tem de cheiro de sangue, gosto de carne e turbulência da alma.

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Ilustração exclusiva para o conto por Ellen Kiechle.

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