Conto: Clara e o dia da fotografia

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A foto em preto e branco, amarelecida pelo tempo, mas Clara sabe que está usando um vestido de voal cor de rosa, sapatos da mesma cor e meinhas brancas, sua melhor roupa. Foi com seu pai ao fotógrafo tirar uma foto daquelas que toda criança tinha naqueles tempos. Saía pouco de casa e não sabe porque não tem lembranças antes disso,  como se naquele dia tivesse sido parida e saído da bruma e do silêncio do útero, para o barulho e as cores do mundo, quando precisou acostumar os olhos à claridade e aprender a respirar sozinha com seus próprios pulmões.

O homem que tirava fotografias deu-lhe um urso marrom para a pose das fotos. Pensou que  levaria o urso para casa e ficou frustrada quando teve que devolvê-lo, mas seu pai para convencê-la, prometeu comprar um igual.  Seu pai, um simples operário de fábrica, depois de algum tempo,  possivelmente após fazer algumas economias, apareceu no Natal com uma daquelas bonecas de plástico de cabelos louros e olhos azuis, mas Clara não achava tanta graça em bonecas, preferia ursos, mas nunca mais tocou no assunto.

Clara tem vontade de se juntar às crianças que brincam na rua, mas sua mãe não deixa. Não sabe o motivo e nunca pergunta, a resposta para os “nãos” dos pais é sempre a mesma. Gosta de ver as pipas dançando no céu, e com cola, papel de seda e varetas de bambu, já tentou  construir algumas. Queria vê-las planando nas alturas, sabia que se estava no controle da  linha, de alguma forma mágica decolaria com elas. Depois de prontas porém, pareciam sempre mais pesadas que o ar, se negavam a sair do chão. As pipas foram assim esquecidas.

Lembra de uma horta com seus canteiros simétricos de hortaliças e temperos, das árvores frutíferas, e da ansiedade pelos frutos maduros:  ameixas amarelas, pitangas, goiabas, laranjas, mexericas. Clara e os pássaros compartilham do mesmo êxtase ao saborear os  frutos. Entre  árvores, pássaros, frutos e sementes, há um pacto silencioso que mantém a ordem natural das coisas.

Crianças têm amiguinhos invisíveis e Clara tem os seus, e tem aos animais da casa. Os animais possuem aqueles olhos de cor âmbar, mudam apenas de tom e de tamanho.  Às vezes vê alguns sendo mortos para o almoço e não sabe o que sente ou se sente algo, só fica ali olhando sem reação. Mas brincar de balanço é o que mais gosta, pois é o momento que pode tirar os pés do chão e voar, mesmo que seja por frações de segundos. Costuma pedalar seu triciclo à toda velocidade no terreno irregular do quintal e de tantos tombos, já ganhou joelhos e cotovelos escurecidos. Na infância correr é tão necessário quanto respirar, e se possível , porque não, voar.

Os cascos de cavalo trotando pelo chão de terra da rua, anunciavam  o padeiro trazendo o pão e o leite pela manhã bem cedo, todos os dias. Depois, a carroça foi trocada por um jipe. O som do padeiro é precedido do cheiro do café de coador que sua mãe prepara. O crepitar das brasas do fogão a lenha, remetem Clara ao sabor de milho verde e batata doce assados.  Naquela época não existia quase nenhum conforto.  A água era tirada do poço e o assoalho polido com uma enceradeira manual  chamada de “escovão”.

Nada escapa aos sentidos no tempo em que tudo parece possível, nenhum cheiro ou gosto, nenhum som ou textura, o mundo tinha então outra dimensão para o olhar. Pequenos freqüentadores do jardim, vêm celebrar o sol e as cores  nas manhãs de primavera, onde uma árvore solitária de cipreste antiga é a guardiã, e pode-se ouvir os grilos cantando nas noites quentes de verão e o canto estridente da cigarra, uma antiga crença diz que as cigarras explodem de tanto cantar. Uma flor misteriosa perfuma o ar noturno.

Nos fundos da casa um riacho com bananeiras à sua margem, tem em volta um charco, um brejo avermelhado que se forma com as cheias da chuva. Clara olha através da cerca  prestando atenção ao som melancólico da água em uma correnteza constante que leva galhos e folhas, e às vezes corpos de animais que ali são jogados. Por vezes aquele pedaço do quintal surge em seus pesadelos como um pântano sombrio onde Clara afunda. Parece que seres misteriosos,  híbridos de anfíbio e humano, a espreitam por trás das bananeiras.  Mas à noite a orquestra dos sapos em perfeita sincronia, embala seu sono.

As fotos antigas trazem sempre alguma melancolia. Nem sempre  por causa de lembranças tristes, mas pela saudade do tempo. O tempo que tece histórias na paciência das horas e às vezes, abruptamente as interrompe. A imagem da menina sorrindo com um urso nos braços pertence a esse tempo linear e cronológico. Alguns sonhos foram encaixotados e esquecidos no sótão da memória, assim como lá estão alguns fantasmas.

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Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

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