Conto: Corpo no ar

0

Corpo_no_ar

Vai me perguntar o que eu fazia naquela noite. Me olhar com medo, pena ou nojo enquanto milhões de possibilidades passam pela sua cabeça, enquanto tenta escolher a mais simples, ou a menos terrível.

Havia um corpo… Sim. Um corpo estendido e eu me lembro perfeitamente disso. O vermelho sobre o lençol branco, a pouca luz, as marcas sobre a pele lisa… Tão macia ao toque, tão suave… Me lembro de sentar na cadeira ao lado da cama, naquele hotel barato e apenas observá-la. Seus cabelos loiros desgrenhados… Os lábios entreabertos…

Continua a me olhar como se eu fosse louco, tolo, ou… Psicopata? Sorrio agitando a cabeça, o pensamento que eu poderia ser todas estas coisas… Me pergunta mais uma vez, e eu te olho com indiferença, ou sarcasmo, porque você nunca irá entender.

A última vez que faz a pergunta tem chamas nos olhos e espera com uma paciência forçada, que nós dois sabemos, não é da sua natureza. Você quer desvendar o caso, eu só quero voltar para casa. Dou o endereço do hotel na divisa da cidade, o nome da garota, seu telefone. Explico que passamos a noite juntos e por isso sim, eu acabei com a vida do homem, mas nunca cheguei perto dele…

Você passa um tempo processando as informações, sorriso nos lábios, provavelmente pensando como eu cheguei a foder a vida do prefeito sem jamais tocar nele… Você pensa em dizer algo sobre ela e eu te encaro esperando. Nada…

Adultério pode ser crime, mas não é o que você está procurando.

Havia um corpo estendido e eu me lembro perfeitamente disso. O vermelho da lingerie de renda provocante sobre o lençol branco, as marcas das minhas unhas sobre a pele lisa, a respiração suave e relaxada… Os cabelos loiros desgrenhados…

Você me deixa sair com um suspiro resignado, eu caminho pela porta com um boa noite polido deixando a estação para o ar frio da noite. Se passaram 24 horas e ninguém mais parece chocado com os acontecimentos, ninguém se interessa por me ver caminhar para o carro que me espera na rua.

Ela sorri suavemente quando me vê entrar e eu espelho seu sorriso para que ela saiba que está tudo bem. Ela liga o carro tirando-nos dali e dirigindo para meu apartamento no centro. Tudo é diferente da noite anterior e eu gostaria de agradecer a Deus por isso, mas ele não tem nenhuma responsabilidade sobre isso.

Me lembro de sentar na cadeira ao lado da cama e apenas observá-la… Meus sapatos estavam por perto então calcei, cantarolando para mim mesmo uma melodia feliz. Coloquei o terno ainda admirando-a em sua beleza dormente e saí para a rua acendendo um cigarro assim que pisei na calçada. Não havia ninguém. Até mesmo a recepção tinha estado vazia.

O encontrei bêbado na saída do clube e aquilo apenas me deu ainda mais coragem. Foram dois tiros sem piscar antes de caminhar de volta para o hotel. No final da rua, um caminhão apitava sinalizando a coleta do lixo, e eu baixei meu chapéu sobre o rosto depois de despejar a pistola entre o lixo fedorento de um restaurante chinês.

Ninguém parece chocado, ninguém se interessa pelo homem de terno preto que caminha distraidamente pela calçada. Passo pela recepção que continua vazia e caminho para o quarto, jogando o terno sobre a cadeira. Ela continua a dormir e eu me sento para observá-la. De toda a noite ela é a única lembrança que vou levar comigo.

Havia um corpo… Sim, um corpo estendido e eu me lembro perfeitamente disso…

 ***

Ilustração de Marcela Renata Ramos.

Não há posts para exibir