Conto: Garrafas

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garrafas

“O senhor mire, veja: o mais importante e
bonito do mundo é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas… ”
– Guimarães Rosa

-Sabe porque mandei chamá-lo, Seu Cirineu!

-Sei não doutor, sei não Seu Delegado…

-O senhor sabe o que é isso?

-Depende, doutor. Depende muito…

-O senhor não me enrole, está vendo, Seu Cirineu? Não me maroteie.

-É só uma ideiazinha minha, doutor.

-O senhor todo santo dia, sem tirar nem pôr, sem parar, faz uma mensagem de pedido de socorro curta e grossa, envia numa garrafa de cerveja que entorna de vereda feito um viciado de miolo mole, e atira numa vazão do Rio Itararé?

-Pois é, Seu Doutor. Não pensei que um bendito dia iriam descobrir esse meu segredinho de mala e cuia, esse meu defeito de fabricação por assim dizer, esse meu probleminha…

-O senhor bate bem da cachola, Seu Cirineu?

-Foi só uma mera tentativa, Seu Doutor, não quis importunar ninguém…nem fazer feio, sequer quis chatear o senhor…

-Sabe quantas garrafas dessas, com seus inusitados pedidos, foram recolhidos nesses mais de 365 dias, Seu Cirineu?

-Sei não, Doutor, sei não…

-Parece que já pegaram outras, aos montes, semeadas aqui e ali… Aliás, falando sério, diga-me lá, o senhor nunca teve um retorno qualquer, desses seus pedidos, de alguma maneira, por algum motivo ou situação de resposta incrível?

-É a primeira vez que me acham… Quero dizer, que sou inoportuno, e ainda acabo assim sendo um baita empecilho para o senhor, não é Doutor. Feijão?

-Bem, é o seguinte, Seu Cirineu: nada pessoal, sabe, mas o senhor precisa fazer um, ponhamos, tratamento. Compreende? O senhor deveria procurar o Doutor Jonas de Alencar na Santa Casa. Sabe, talvez de morar ali pertico da Gruta da Barreira, do Parque Ecológico das Andorinhas Bentas, o senhor esteja influenciado, talvez sofra alguma radiação, sabei-me lá… Além do senhor deixar de poluir o Rio Itararé com uma bendita garrafa todo santo dia, ainda iria melhorar muito do juízo, ter companhia, tomar uns remédios, viver melhor. O senhor me entende; compreende o que eu estou tentando dizer?

-O senhor por acaso leu a mensagem que vai sempre dentro da garrafa, Doutor Feijão?

-Sempre a mesma… Sempre a mesma… Disseram…

-Quem “disseram”, Doutor?

-Não importa, sei que é sempre a mesma mensagem de pedido de socorro que o senhor enfia dentro da garrafa vazia de cerveja…

-Então o senhor por certo, leu direitinho…

-Digamos que li sim, Seu Cirineu. Li sim.

-E então, Doutor, falando francamente, o que o senhor acha? Eu estou pirando? O meu grito de agonia tem cabimento, faz sentido, há alguma saída pro meu causo?

-Sabe, seu Cirineu, cá entre nós, que ninguém nos ouça, falando do fundo do meu coração, se eu pudesse, se eu não fosse normal, comum, se eu não fosse autoridade constituída por lei, eu, sinceramente, faria a mesma coisa, a mesma mensagem, até num rio maior, quem sabe…

-Então o senhor não vai me prender, abrir inquérito, coisa de-assim?

-Não vou não, Seu Cirineu. Chamei o senhor aqui mais por obrigação, desencargo formal de consciência, sabe, foi o pessoal da seccional do IBAM que trouxe o problema…

-Devem de achar que eu sou um purgante, cabeça de vento, da pá virada, miolo mole…

-Não senhor, até respeitaram a sua mensagem, o seu objetivo. Acho que me trouxeram uma das garrafas mais por obrigação de oficio, só isso.

-O senhor vai fazer o que, então, Doutor Feijão?

-Nada, só um termo de circunstância, carimbo, papel oficial, assinar e mandar pro arquivo morto…

-E depois vai me liberar sem qualquer sanção?

-Claro, Seu Cirineu. O senhor está livre. Sabe, este mundo do jeito que vai, precisa de mais gente sensível como o senhor. Foi um prazer enorme conhecê-lo, uma grande honra pra mim, sabe. Fiquei até comovido. Aprendi muito com o seu gesto, a sua alma de pássaro, a sua sensibilidade fora do comum. Falando francamente, sinceramente espero que um dia alguém certo acabe achando a sua mensagem, alguém desse ou de outro mundo,  sabe, o recebedor certo, a dimensão certa… e então o senhor seja atendido, resgatado…liberto… talvez… quem sabe…

-Então vou indo, Seu Delegado. Tenho que passar no Armazém do Antonio Pelissari ainda, comprar a bóia do mês.

-Vá com Deus, Seu Cirineu. O senhor se cuide direitinho, hein?

E o aparentemente agora cândido do Seu Cirineu, um viúvo sexagenário sem herdeiros ou ancestrais vivos, ex chefe-de-trem aposentado da Estação Sorocabana, viajado nas malhas dos ramais ferroviários da região de Itararé toda, ainda algo encabulado, com problemas hormonais mais alguma ocasional depressão pela solidão-coivara, responde, ao seu jeito de treva branca, todo moleirão:

– Obrigado Doutor. Prometo que quando tomar a próxima cerveja preta de novo, ao escrever a mesma mensagem de sempre, vou pensar muito no senhor. Com esperança de que, nalgum lugar eu seja finalmente identificado, e venham me levar de volta para a minha casa que é do outro lado… Que venham me levar para o meu verdadeiro lar… Pois minha alma não é desse mundo, e deve certamente que haver uma Itararé Celeste… Uma Shangri-lá… Uma Pasárgada…

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