Conto: Marli

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Ilustração Ellen Kiechle - Marli

PRIMEIRA PARTE
Marli

Enquanto tia Zezé ia e vinha, a pequena repetia para si mesma: “Fui esbofeteada”. Olhava para as primas sentadas na sua frente com caras de catequista. Tia Zezé, irmã da mãe da menina não conseguia Cesar. Criou Marli desde “catatauzinha”,era quase como uma mãe para a menina. Chorava feito louca por ter presenciado tamanha assombração.

Passava das dezessete horas e poucos minutos, quando tia Zezé chegava em casa e assim que passou a chave na porta, ouviu….Pequenos e sufocados gritinhos agudos que vinham do fim do corredor e descia a escada. Suou as mãos. Se fosse o que ela podia estar imaginando seria quase como um apocalipse. Pois era.

Marli estava peladinha da Silva em cima do namoradinho. Tia Zezé mentiu para si mesma por alguns segundos ser alguma espécie de delírio e transpirando, feito louca entrou no quartinho forrado de papel de parede clarinho aos berros:

– Mais essa agora!

A menina, que parecia fazer do colo do namoradinho uma montaria começou a chorar:

– Tia Zezé! Perdão Tia Zezé!

Esbofeteou a menina na frente do namoradinho, que ainda nu, chorava vendo a cena. Pôs o menino pra fora. Jogou em Marli a manta da bisa que estava na poltrona e telefonou:

– Alô. Pois olha. Vem pra casa agora que Marli aprontou outra vez!

Olha só. Marli era daquelas meninas que quando tinha vontade, não passava. Tia Zezé enlouquecia quase que diariamente com as crises da menina. Terminada a ligação, a velha senta na frente de Marli e desabafa:

– Não sei onde eu estava com a cabeça quando disse sim pra sua mãe. Deus a tenha! Já não me bastava o vexame de semana passada?

A titulo de informação, semana passada, Marli, enquanto brincava com as meninas no quintal durante a novena da Tia Nena, resolveu enfileirar as pequeninas e pulou de boca em boca dando nota para o beijo.  Tinha quatorze agora. Mas já gostava de dar notas desde os nove.

– Sua mãe se fosse viva, se matava. Repetia a tia enquanto engolia o choro.

Ainda suada, Marli brincava com as pontas do cabelo de cabeça baixa, balançava os pezinhos e vez ou outra levantava a manta da bisa, que insistia em escorregar e mostrar os peitinhos. Chegou uma prima. Prima essa que ligou para outra prima, que ligou para a outra prima, que ligou para a outra que resolveu ligar para o padre. Sentadas no sofá, encaravam Marli como se ela fosse sei lá, um quadro da santa ceia.

– Tia. Meninas. Olha.

Marli tentava esboçar qualquer tipo de justificativa.

– Me dá uma coisa que eu não sei.

As primas se olhavam.

– Juro que é quase como se não fosse eu.

A tia pensava: “Dissimulada”.  Três toques na campainha.

– Deixa que eu abro!

Gritou uma das primas que olhava a menina e segurava o enjoo como de suco quente de melancia.

– É o padre!

O velho entrou rasgando e se ajoelhou na frente da menina.

– Nos deixem a sós, por favor.

A tia tratou de reunir as narigudas e encaminhá-las todas para a cozinha.

– Me diz Marli. É verdade o que sua prima disse?

– Depende.

– Depende de que?

– O que ela disse?

– Você com seu namoradinho.

– Ele não é meu namorado.

– Como não?

– Não é. É um colega meu da sorveteria.

O padre suou as mãos, abriu o colarinho.

– E outra padre. Não sou eu que faço essas coisas, entende? Eu às vezes nem quero, nem penso. E quando vejo já estou fazendo.

– Escuta o que vou te dizer. Tens contigo não só um. Mas muitos. Muitos demônios. Compreendeu?

A menina estatelou os olhinhos. Sentia-se completamente infernal. Quase sobrenatural sua existência.

– O senhor quer-me dizer que entende? É comum, é?

– Comum eu não sei. Mas tem cura.

Marli pensou por alguns segundos se queria se curar ou não. Com os olhos brilhando pensava: “Mas é tão bom. Tão bom.”

SEGUNDA PARTE
O café da manhã

Pronto. Depois da reunião que durou no mínimo duas horas na biblioteca, tia Zezé saiu decidida. De braço dado com o padre e vacilante nas palavras pelo tamanho da agonia:

– Escuta aqui, Marli. A partir de hoje não sais de casa, entende?

A menina balançou a cabecinha engolindo o choro:

– Entendo sim.

O combinado na biblioteca era que a partir da segunda que entraria, as primas se revezariam na vigília. Se mudariam todas para casa da tia Zezé. Espaço não era problema, visto que a casa da tia Zezé, era da bisa de Marli. Tinha ao todo vinte e um cômodos, doze eram só quartos.

O padre orientava olhos vivos em Marli vinte quatro horas por dia, principalmente no banho, repetia incisivo paras as primas:

– O banho é o problema. É no banho.

Já era o quarto dia que Marli era vigiada como recém nascido. Parada na ponta da escada observava o entra e sai dos quartos, o barulho dos saltos e a luz que entrava da última janela e iluminava o altar do fim do corredor. Percebera então que estava presa em um convento de primas. Pela primeira vez nos seus poucos quatorze anos, Marli sentiu ódio. E sentir ódio era bom. E tudo que era bom, Marli fazia.

No dia seguinte, posta a mesa do café. Uma das narigudas pediu licença para iniciar a oração.  Marli achava um tédio de outro mundo e morria de medo de oração. Não por nada. Mas ela ria, ria como besta durante orações. Achava graça. A menina tomou ar, cerrou os dentes para disfarçar qualquer possibilidade. Rezaram. Terminada a oração, a mesma prima encheu a xícara de café e o tomou com uma necessidade quase de tabagista. Engasgou. Foi a gota d’água.

Marli que já segurara firme o riso durante o pai nosso, não aguentou. Cuspiu biscoito e leite boca fora num engasgar de riso descomunal. As tias se olharam por poucos segundos e não aguentaram. Riram. Riram da nariguda. Riram do café. Riram do riso de Marli. Riam de Marli.

E quando perceberam que tudo foi culpa da espontaneidade da menina, se sentiram imundas. Uma chegou a perder o apetite e sair da mesa sem ao menos fazer o nome do pai. Tia Zezé encarava a menina da ponta da mesa. Com os olhos estourando, se levantou, pegou Marli pela pontinha da orelha e foi triunfal:

– A partir de hoje seu café da manhã é no quarto!

Já não bastava ser vigiada das pontas do cabelo aos pés durante o banho. Marli, agora sairia do quarto só na hora do almoço. E olhe lá.

TERCEIRA PARTE
A morte

Eram seis e trinta e cinco da manhã, quando Tia Zezé sentiu escorrer pelas pernas. Abriu os olhos assustada, subitamente se descobriu. Tinha um sério problema: Não segurava a urina. Senhora de bexiga solta, vivia se assustando durante as madrugadas e tendo que levantar às pressas. Vez ou outra urinava a cama inteira e usava a desculpa de sempre no dia seguinte para a empregada:

– Outro pesadelo. Acreditas?

Tia Zezé cruzou o corredor correndo com uma calha no meio das pernas. Sentou-se na privada e por lá ficou uns bons minutos. Enxugada a periquita, Tia Zezé se levantou ainda resmungando do banho que se deu. E como num golpe besta de ar, caiu. Sentiu uma pontada no coração, doía tanto que parecia atravessada por lança.

Começou a sentir uma falta de ar que só aumentava e apoiada na beira da pia tentava se concentrar numa forma quase inútil de salvação. A porta abriu lentamente trazendo um risco de luz no banheiro cinza. Era Marli.

– Graças a Deus! Pensou Tia Zezé.

A menina, assustada, assistia a cena com certa maravilha. Não entendia. Mas via Tia Zezé com olho de dor. Muita dor.

– Anda. Chama gente.

Repetia Tia Zezé no pouco fôlego que sobrava.

– Anda, Marli. Chama gente, Marli!

A menina ficou estática. Tinha medo, assombração, mas ao mesmo tempo achava linda a cena. Não sentiu vontade de ajudar. Nenhuminha. Tia Zezé, vermelha quase que explodindo foi perdendo as forças. Morreu aos pés da menina.

E foi assim que a morte se fez linda na frente de Marli. A menina fechou a porta, andou com uma naturalidade de passarela, entrou no quarto, puxou a cobertinha e dormiu. Profundamente.

QUARTA E ÚLTIMA PARTE
A despedida de Marli

As narigudas fizeram um escândalo de chegada de circo quando entraram no banheiro. Foi uma choradeira de dar dó. Uma subiu pressão. Outra caiu açúcar. Não se conformavam com a morte da velha.

Foi-se um dia e meio de velório. Um entra e sai danado, vizinhança em peso. De coroas de flores tinham umas treze. Cada tia ou prima que chegava era praticamente uma cena de  novela. Viam-se e choravam. Tia Nena, que era irmã da mãe de Marli e da Tia Zezé, não arredou o pé do caixão. Chorava a morte da irmã feito mãe.

Marli, na sua inocência não entendia absolutamente nada. Uma das primas vez ou outra ralhava com a menina:

– Sua segunda mãe morreu. Morreu e não derramas uma lágrima! Uma se quer!

Mas Marli não tinha vontade nenhuma de chorar, imagina. Chorar por quê? Para que?

Assim que um dos tios apareceu com a tampa do caixão, se iniciou o maior dos escarcéus, Tia Nena gritava. Seguiu corpo, família e Marli rumo ao cemitério. Um cortejo de carros de causar trânsito no bairro. Marli de vestidinho preto, observava pela janela os transeuntes e pensava em várias coisas como chocolate, boneca, música, banho. Nada perto, nem de longe com Tia Zezé.

Chegaram. Formou-se uma fila de parentaiada jamais vista. Iniciaram os cânticos. Iam subir a rampa quando uma das primas lembrou:

– Espera Tia Nena. Foi ao banheiro.

Esperaram.

Começaram então com a procissão cemitério adentro. Era julho, fazia frio pra burro, o vento cantava cortando. Marli que se protegia debaixo da sombrinha de uma das vizinhas, admirava cada imagem. Campa por campa. Ficou maravilhada com o anjinho de mármore.

Parados agora em frente à capelinha da família, as tias, primas e vizinhas se despediam de Tia Zezé com um respeito e admiração digna de uma boa católica.

A ventania aumentou trazendo uma chuvinha fina, gelada. Ventava tanto que as pinhas se soltavam das árvores feito folha. Já passavam cimento quando veio então em Marli uma vontadinha daquelas.

Quis sentir a chuva. E sentiu. Soltou o vestidinho até as canelas com “meinhas” pretas.

O espanto foi monstruoso. E abrindo os braços, Marli sorriu. A chuva engrossou de tal maneira que parecia contemplar o novo surto da menina. E foi assim que Marli enterrou Tia Zezé: peladinha da Silva.

 ***

Ilustração de Ellen Kiechle.

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