O projeto 12 Contos continua! Preparados para mais um? Conheça Seu Arlindo e o seu binóculo neste que é o quarto conto do projeto.
Quando surpreendeu o neto, de 15 anos, concentrado espiando pela janela do quarto com um binóculo, Seu Arlindo, que passava uma temporada na casa de sua filha para distrair-se da morte de sua esposa, soube que o neto mentiu quando falou que espiava os pássaros. Augusto ainda segurou um livro para disfarçar o volume na frente do calção e, envergonhado, desconversou. Disse que precisava ler o tal livro para uma atividade do colégio. Ao ver o neto embaraçado, Seu Arlindo, que já foi adolescente, mesmo numa outra época, sabe que ele mentiu para esconder o que fazia. Segurar algo na frente do calção é o mais comum dos truques, usado desde os tempos mais remotos para esconder uma ereção. O susto que Augusto tomou ao ser surpreendido confirma sua suspeita.
Aos 76 anos, Seu Arlindo, cercado de gente pelo menos trinta anos mais jovem, não é a primeira opção de conversa de ninguém. Pelo cheiro de sopa, sabe que a filha está ocupada com o jantar. Seu genro está na fábrica, sua neta, que estuda à tarde, está na escola e o neto vive trancado no quarto. Por não poder mais trabalhar ou ajudar nas atividades domésticas e nem sair para passear, pois não tem quem o leve, a mente de Seu Arlindo se apega ao mais leve sinal de uma ocupação. Depois do acontecido, ele toma por tarefa sua descobrir o que o neto espiava pelo binóculo. Imagina uma mulher trocando de roupa ou alguma menina tomando banho, mas não querendo rejeitar nenhuma hipótese, poderia não ser menina nem mulher o que Augusto espiava, mas sim alguém do seu próprio gênero. Decidiu decifrar o enigma não só para saber se o neto espia garotas ou garotos, mas para sair da ociosidade de todos os dias e ainda esquecer um pouco sua recente viuvez.
Preocupado em investigar secretamente, Seu Arlindo comeu pouco, dormiu menos ainda e levantou-se na manhã seguinte determinado. Na sala, alheio à programação da televisão, ele planeja o cumprimento da tarefa que assumiu no dia anterior. Não anda de um lado para outro, pois lhe faltam forças nas pernas e aprendeu que nada do que faça, a não ser a tarefa desejada, vai acalmá-lo. Espera ficar sozinho e isso não é fácil de acontecer naquela casa. No fim daquela manhã, sua filha e sua neta descem para comprar algo para o almoço. Entende que o destino é seu aliado. Por garantia, espera para que ninguém volte do meio do caminho por ter esquecido algo importante e vai para o quarto do neto. Entra no templo sagrado de um adolescente, que sem vigias ou armadilhas, deixa os tesouros e segredos vulneráveis. Sem afastar toda a cortina encosta o binóculo nas lentes dos óculos de grau, pois sem eles, ainda que com o binóculo, não distinguiria as formas lá fora. De onde está, no primeiro andar do prédio, a visão mais nítida é a de duas janelas da casa em frente. Uma tinha a cortina fechada e a outra, escancarada, foi a escolhida para tentar enxergar o seu interior.
Após pouco esperar, vê entrar uma moça no cômodo espiado. Enrolada na toalha ela penteia o cabelo molhado de frente para o espelho e de costas para a janela, mas quando puxa a toalha, ele abaixa o binóculo. É certo invadir a privacidade de alguém dessa maneira? É uma traição? Uma ingratidão de sua parte interessar-se por outra mulher, quando a sua ainda nem esfriou na sepultura? Sentir-se-ia ela insultada por ele desejar justo uma moça? Pois se quando estava viva não poderia competir com alguém tão jovem, podia menos agora depois de morta. Mas esses pensamentos não tiveram tempo de se demorar. O sangue esquentou e seu instinto masculino, que julgava para sempre adormecido, dominou-lhe. Lembrar-se-ia de sua esposa com muito amor enquanto vivesse, a saudade apertava-lhe o peito sempre que respirava, mas a morte os separou e estava desobrigado a ser fiel a uma defunta. E se é honesto invadir a privacidade da moça, estão aí as cortinas e porque ela não as fecha? Há sempre o risco de ter, como agora, alguém olhando. E resolvidas as questões que lhe pesavam na consciência, voltou a espiar.
A toalha estava sobre a cama. Seu Arlindo e a moça observam um corpo nu, ele o dela e ela o dela próprio, ele pelo binóculo e ela através do espelho. De formas arredondadas, agradam-lhe as nádegas macias, a meio caminho entre as coxas e a cintura fina vista até a altura onde os cabelos cobrem o resto do tronco. A moça passa um creme no corpo que, outrora de menina, já se transformou em corpo de mulher. E que mulher. Tamanho era o envolvimento do velho com o que via que acredita sentir o cheiro do hidratante sobre a pele limpa. Ela suspende os cabelos no alto da cabeça, ele vê os ombros nus e, sob a axila, o perfil de um dos seios. Sente seu sangue circular por canais que há muito tempo não circulava. Precisa de um livro caso alguém chegue de repente, igual ao seu neto no dia anterior.
Ela vira de costas para o espelho e fica de frente para a janela. Revela seios firmes e mamilos como dois botões de rosa. O velho se lembra do toque suave, de pele de pêssegos, dos seios de uma moça. Ávido, desce o olhar e para entre as curvas do quadril dela, fitando sua bela flor desabrochada, como costuma chamar. Uma rosa livre de espinhos; raspados estão todos os seus pelos. Feliz por não ser cardiopata, o coração pulsa mais forte na garganta ao ver o que há tempos não via: as vergonhas de uma moça, que sem vergonha nenhuma se mostra, sem saber que o faz, a um espectador distante. Será que ela não sabe? Ele segura e aperta o que lhe cresce entre as pernas, sente um vigor já há muito tempo esquecido. Querendo sentir, vezes sem fim, o que sente agora, soube, nesse instante, o porquê de muitos velhotes perderem a cabeça quando tem na cama uma moça, sem importar-se, muitas das vezes, se as juras de amor são reais ou se são pelos reais da sua carteira.
O interfone toca. Sua neta, por brincadeira infantil, sempre que chega à portaria, antes de entrar no elevador, dá um toque para avisar que está subindo. A moça ainda nem as roupas de baixo pusera, mas Seu Arlindo, temendo ser pego em flagrante, larga o binóculo e sai do quarto. A labirintite e a lentidão das pernas, o impossibilitam de correr, mas precisa chegar à sala antes delas. Um velocista corre, na sua cabeça, como se faltassem poucos metros para cruzar a linha de chegada, mas fisicamente, um corpo senil se esforça para percorrer a desprezível distância entre o quarto e a sala. No meio do caminho sem ter sequer um livro nas mãos para disfarçar seu estado, ouve a chave girar na fechadura. Se correr cai, se não correr não chega. A porta se abre, elas entram. Não tem ninguém na sala e não encontram o velho em lugar nenhum. Só quando o chamam é que Seu Arlindo responde do banheiro do corredor, onde se trancou como última alternativa de esconder seu estado e se recompor.
Passou o resto do dia sem companhia, como todos os outros dias desde que viera visitar a filha. Não perdeu tempo fantasiando um romance, conformado estava de que tudo não passaria de amor platônico. E se algum dia tivesse, talvez, uma moça em sua cama, não seria aquela. Sente-se profundamente grato à moça por fazê-lo, de propósito ou não, sentir-se vivo, deixando de lado, naquele momento, a sombra do luto e o fantasma da morte aproximada e também agradece a qualquer ser superior por ter permitido só a essa altura da vida, ele ter visto aquela moça. Não a viu como muitos adolescentes a veriam, que com os hormônios em ebulição não enxergariam nada além da figura nua para satisfazer suas fugazes necessidades egoístas. Seu Arlindo, sem a forte influência dos hormônios, deleitou-se em cada pedaço do corpo que viu como quem lê uma boa poesia, apreciando a beleza das formas, a suavidade das rimas e a elevação da alma.
Contam-se numa mão quantas vezes reviu a moça que não estava nua todas elas. Dias depois, de manhã cedinho, horas antes de voltar para casa, Seu Arlindo despista a todos, pede segredo ao porteiro e atravessa a rua com cuidado. Joga, pelas aberturas do portão de ferro, um pequeno bilhete no jardim da casa em frente ao prédio. E volta antes que acordem e sintam sua falta. Mais tarde, nesse mesmo dia, a moça, aquela da janela, encontra o bilhete em seu jardim. Com letras trêmulas de uma coordenação motora de quem está perdendo a firmeza das mãos, no bilhete estava escrito: Obrigado por me fazer sentir vivo outra vez; e no final, de modo piegas e meio clichê, no sentido mais literal da expressão, assinou: do seu admirador secreto.