Conto: O nosso refúgio

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Acordou assustado. Havia sonhado com pastas, relatórios, tristeza, frustração. Viu a mulher deitada a seu lado, dormindo tranquilamente. Beijou-a, levantou, foi ao banheiro. Era segunda-feira e ainda sentia o gostinho do final de semana feliz que havia passado junto à esposa. Seguiu sua rotina costumeiramente, não queria ir trabalhar, mas não podia faltar. Ganhava por hora e havia muito trabalho atrasado. Não porque fosse incompetente, mas porque sempre aceitava fazer o trabalho dos colegas. Ele pensava consigo: é a lei da boa camaradagem, quando eu precisar, sei que farão o mesmo por mim.

No trânsito, tudo normal, mas não conseguia se concentrar no caminho. Olhava constantemente para trás. Lembrou-se da esposa, dormindo tranquila, sem precisar se preocupar com coisa alguma. Lembrou-se do final de semana alegre e divertido. Os dois na cama, no sofá, conversando, rindo, defendendo suas músicas preferidas. Sentiu uma vontade imensa de retornar para casa, mas não podia. Tinha que trabalhar. Havia muito trabalho acumulado, ganhava por hora…

Chegando à empresa, se desanimou ainda mais quando viu sua mesa. Respirou fundo. De longe dava para ver a pilha de pastas e papéis. A mesa dos demais estava organizada, com o trabalho em dia. A sensação que lhe veio como um soco foi de incompetente, inútil. Sentou. Não sabia por onde começar. Ouviu a voz da mulher cantarolando durante o banho, enquanto ele preparava algo para comerem. Sua voz era tão doce, tão boa de ouvir. Sabia que eram felizes, que quase nada os incomodava e que o final de semana era a melhor parte de seus dias.

“Está muito ocupado?”. Uma voz o trouxe à realidade. Olhou a pilha de pastas acumuladas em sua mesa, engoliu seco. “Um pouco. Precisa de alguma coisa?”. Apesar de a realidade prevalecer à sua volta, ainda ouvia a voz da mulher… O homem, ou colega como muitos insistem, o olhava irritado. “Não, não preciso de nada. Acho que você já tem muita coisa pra fazer.”. Se fosse um dia normal, ele diria “não, quê isso… Em que posso ajudá-lo? Se precisar mesmo, eu me viro…” Mas hoje, ouvindo sua mulher, parecia não querer saber de mais nada. Só queria que chegasse logo o sábado à tarde.

Começou por um relatório. Os números estavam confusos, mas digitava como se não percebesse nada. Sempre fora um funcionário exemplar: ajudava os demais colegas, fazia todo o seu trabalho em dia e ainda conseguia entregar os favores no prazo. Nunca faltava. Mesmo quando sua mulher estivera doente, lá estava ele, no mesmo horário, no mesmo lugar, com a mesma cara, o mesmo terno. Novamente os números o confundiram. Nunca ganhara nada a mais por isso. Seu salário continuava o mesmo, apesar das horas extras, e o funcionário do mês era sempre aquele que mais pedia favores. Coitado, ser funcionário do mês não deve ser fácil. Deve ser tanto trabalho, que sempre precisa pedir ajuda…

Na hora do almoço, quase não comeu. Ligou para casa. Sua mulher atendeu ao segundo toque, sabia que era ele e disse: “Oooii”. Era o oi mais doce que ele já ouvira. Era a voz mais linda que já escutara. Conversaram um pouco. “Por que não me acordou? Eu queria ter feito café pra você…”. “Não tava com fome e tava com pressa… Você tá bem?” “Sim. Não consigo parar de pensar em ontem, foi tão bom! E você? Como tá?”. “Igual você, não consigo parar de pensar em você, em ontem… Agora tenho que desligar, tenho um monte de coisa pra fazer. Amo você!” “Também te amo, se cuida”. Desligou. Respirou fundo, foi andando desanimadamente para sua mesa. A pilha já estava menor. Iniciou uma pesquisa… Sentiu o perfume de sua mulher. Seu cheiro se espalhava pela casa, assim que saía do banho. Estava linda, com o cabelo molhado, sorrindo… O cheiro era tão bom que nem sentia mais o cheiro da comida. Esqueceu o fogão e a levou ao quarto. Levantaram, assustados, com o cheiro de queimado, que ela sentira, pois ele sentia apenas o cheiro dela… Correram para a cozinha. Riram, acharam graça, desligaram o fogo e ficaram por ali mesmo, conversando. Ela falava e ele sentia seu cheiro…

“Já terminou o relatório?” Outra voz impertinente o arrancava de suas lembranças, de seu dia perfeito. “Sim, senhor. Acabo de iniciar a pesquisa e falta pouco para terminar de fichar essas pastas…” “Falta pouco? Sua mesa tá uma pocilga! Você não sai daqui hoje, enquanto não terminar tudo! Preciso dessas pastas pra ontem, ouviu bem? Pra ontem!”. Ele ficou ali, parado, sem ação… Só terminaria aquilo tudo, no final da semana. Respirou fundo. Tentou esquecer sua mulher, sua voz, seu cheiro…

Já passava das sete, quando seu celular tocou. Era sua esposa. Não queria se distrair, mas sabia que ela ficaria preocupada se ele não atendesse. “Alô…” “Oii! Vai demorar pra chegar?” “Vou… tenho que terminar um monte de coisa e o chefe já deu uma de todo poderoso… Acho que vou chegar no mesmo horário de sempre… Como foi seu dia?” “Ahh… A mesma coisa de sempre… Limpei a casa, fui no mercado, visitei a mãe… Senti sua falta…” Isso apertava seu coração. Sabia da vontade que a esposa tinha de trabalhar, mas não conseguia, mesmo tentando… “Também senti sua falta. Mas não precisa me esperar…”.

Desligou. Continuou seu trabalho… 20 horas, 21, 22 e ainda não tinha terminado. Viu sua mulher dormindo. Sua imagem, apesar de não ser perfeita aos olhos dos outros, era uma dádiva para ele. Seu corpo era lindo, seu rosto mais ainda. Seu único braço não era defeito para ele, mas quase uma frustração para ela. Ela não conhecia a rotina dele, pois nunca trabalhara. Ele não conhecia a rotina dela, pois desde pequeno trabalhara. Os dois se completavam nessa diferença. E se uniam ainda mais na semelhança.

Desistiu de terminar o que ainda restava… Já estava tarde, sua esposa já estaria dormindo e seu chefe nem se lembraria do que havia dito. Desligou o computador, apagou as luzes. Rezou para que o final de semana logo chegasse, assim como sua mulher havia feito, antes de dormir.

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