Registro no diário de bordo: foi com “imensa felicidade” que os vinte e dois tripulantes do Fahyza resgataram um homem magro, queimado de sol, dono de uma barba de vários meses, à deriva no meio do Pacífico. Pela aparência ninguém se arriscou a dizer sua origem, fato notável; mesmo assim, as boas-vindas foram sonoras, entusiasmadas. “Todo homem é igual na miséria”, anotou o capitão.
Logo foi improvisado um discurso no convés. O capitão disse que o resgate era sinal de boa sorte, um encontro bem-aventurado entre náufrago e marinheiros. Gritos, palmas, algumas lágrimas. Só o homem não deu sinal de compartilhar da comoção. Em meio à alegria geral ele permaneceu indiferente, descrito no diário como “intranquilo”, “agitado”, “nervoso”.
Inúmeros registros mencionam o comportamento peculiar do náufrago. No dia da salvação ele não parava de gesticular desesperadamente, acenando que deviam ter cuidado com o pequeno bote, recolhido pela tripulação. Reuniu garrafas, que encheu de água, e estocou comida enlatada na embarcação. Mesmo fraco, comunicou por mímica que precisava de velas e remos, no que foi atendido embora não compreendido pelos marinheiros. Tinha sido salvo, diziam, salvo, e navegava a caminho do Chile, distante poucas semanas. Mas ele não se acalmava. Apontava, algo no horizonte. Gritava.
Húngaro, finlandês, grego, que idioma falava? Filipinos que limpavam o convés confirmaram que não era sua língua nem vietnamita ou tailandês. Resolvendo provisoriamente a questão, um alemão, conhecedor da Europa, disse ao capitão que já tinha ouvido alguma coisa parecida. Lembrava vagamente o que se falava numa região da Espanha, o País Basco.
O Passageiro Basco, como ficou conhecido, não descuidava do bote, o que começou a disseminar um incômodo pelo Fahyza. “É o cansaço”, disse o capitão. Precisava de sono, então arrumaria a cabeça e se faria entender, parando de agir “inadequadamente”. Foi acomodado num beliche vago e orientado a dormir, se recuperar, mas os marinheiros se espantaram ao ver o Basco contando nos dedos a noite inteira. Na terceira madrugada acompanhando o ritual, um deles notou que talvez fosse o tempo que o Passageiro Basco contava. Talvez segundos, uma unidade qualquer, grãos de areia de uma ampulheta imaginária, o compasso caótico do casco batendo contra as ondas, algo longínquo, inacessível, mas periódico: foram algumas das opiniões a respeito, coletadas pelo capitão e resumidas no diário.
Durante os dias, o Passageiro Basco não saía do pátio onde colocaram seu bote. Sua única preocupação era a embarcação. Ajustou polias, remendou velas velhas e testou as novas, arrumou cordas. Se empenhava arduamente naquela manutenção, aparentemente inútil.
Ponto importante. O primeiro evento fatal ocorreu no quarto dia após o resgate. O diário de bordo é omisso quanto às causas. De fato, o registro conta brevemente o episódio: um oficial da casa de máquinas entrou com uma barra de ferro na cabine de comando, completamente fora de si. Só parou de destruir os instrumentos de navegação e comunicação quando o imediato o acertou com uma cadeira, o que abriu sua caixa craniana e revelou uma emaranhada massa encefálica. Morreu ali mesmo.
Os dados seguintes são confusos, feitos às pressas, numa caligrafia irritada. A comunicação via satélite foi interrompida pela sabotagem da antena; no rádio só se ouvia estática. O Passageiro Basco saiu da cabine e passou a dormir no chão de pranchas do bote. Ao contrário do que tinha ocorrido no período inicial, insone, os marinheiros notaram que agora o sono do Basco era pesado: quem fazia a ronda noturna relatava o ronco forte.
Mas sua aparência piorava, enquanto outros eventos infelizes ocorriam. Um aprendiz apareceu enforcado no banheiro e o imediato uma noite se jogou ao mar, desaparecendo. O Basco cada vez mais exausto. Apontava, algo no horizonte. Gritava em sua língua estranha. O capitão uma manhã surpreendeu o homem ajoelhado, talvez rezando. Esticava os dedos, um a um, repetindo palavras incompreensíveis.
As entradas na ata da reunião que ocorreu no refeitório, oito dias após o resgate, resumem a situação caótica. Consideraram a hipótese de contaminação da água do Fahyza. Compreensível: a tripulação em pânico buscava racionalizar os episódios. Não tinha nada na água, explicou o médico. Uma simples explicação psiquiátrica, científica. A provisória incomunicabilidade teria desencadeado um surto suicida entre os espíritos mais fracos, naturalmente. Então se mencionou a possibilidade do Basco estar envolvido nas mortes. “Bobagem”, sentenciou o capitão. O rádio seria consertado, corrigiriam a rota, as mortes seriam apuradas por uma comissão em terra firme. Nada relacionado com aquele miserável, só a mesma desgraça humana: a deles e a dele; várias e uma só; todos no mesmo barco. “Esqueçam as superstições”, finalizou.
Os marinheiros passaram a ignorar o Passageiro Basco. Mas, entrincheirado no bote, ele não parecia se preocupar com isso. Consumia lentamente seus mantimentos, e não descia ao refeitório. Continuavam seus hábitos, gritos, contagens. Parecia pronto, conforme o diário de bordo. (Pronto?)
De fato, com todos os instrumentos em condições funcionais, no décimo segundo dia após o resgate a tripulação respirou aliviada. Comunicados os eventos, houve um intenso intercâmbio de dados sobre o clima. Uma tempestade se formava ao sul e vinha na direção do navio: mau tempo, péssimo mar, ventos terríveis. No mais, tudo ia bem. O Fahysa tinha atrasado, mas chegaria à Valparaíso em no máximo vinte e cinco dias.
O próximo registro relevante descreve o surto de disenteria que durou três dias e quase dizimou a tripulação. Era o décimo sétimo dia após o resgate. “As crises agudas de diarreia e vômito levam o indivíduo a perder todo apreço por si mesmo, pela vida; desconfia da justiça, dos rótulos, dos valores, Deus, dos valores”, atesta um fragmento. Ninguém morreu, frustrando os desejos suicidas de muitos durante a epidemia. Uma nova reunião foi convocada.
“A situação é insustentável”, começa a ata seguinte. “Nenhuma dúvida: o Passageiro Basco trouxe a loucura e a morte”. Era a posição quase unânime.
Depois da exposição indignada de alguns marinheiros, os que conseguiam falar, foi proposta uma solução democrática. A medida era eficaz e até lógica; espanta pela solidariedade, pelo bom senso, pelo uso avançado da razão humana em condições adversas. Nenhum voto valeria mais que o outro, as cédulas não seriam assinadas, tudo secreto, honesto. Simples. Aberta a urna, o único voto contabilizado a favor da vida do Passageiro Basco não permaneceu em sigilo por muito tempo.
O capitão argumentou que era “puro folclore”. Segundo ele, não havia “qualquer relação comprovável entre os acontecimentos”, nada justificava aquele ato “hediondo, criminoso.” Mencionou que não podia concordar com o procedimento, mesmo legitimado pela maioria. Jogar um homem ao mar numa tempestade era assassinato, puro e simples assassinato. A ata menciona um pequeno tumulto, coisa breve e sem importância no contexto.
Não há indicação do nome, mas quem comentou os motivos do voto do capitão resolveu a questão. Disse que apenas o Passageiro Basco não tinha adoecido, enquanto toda tripulação andava bêbada na linha estreita entre a vida e a morte. Os dois fatos, a doença geral e a saúde individual, se não formavam uma prova incontestável, pelo menos eram um indicativo razoável. Boa argumentação. O próprio capitão, obrigado a avaliar seu estado, concordou que nenhum deles aguentaria outro surto, por mais curto que fosse. Chegar a Valparaíso era essencial, e com a tempestade se aproximando um resgate era difícil. Necessário adotar uma medida. Na apuração seguinte não foi contabilizado nenhum voto contrário à expulsão do Passageiro Basco.
Ele recebeu a notícia com naturalidade, através de gestos. Acolheu seu destino como um velho e esperado amigo. Aliás, pareceu pela primeira vez calmo ao capitão. Entrou no bote sem resistência, e foi baixado de volta à água pelos braços finos e trêmulos dos marinheiros. Sem discursos, todos respiravam aliviados quando subitamente, antes de chegar ao mar, o náufrago fez mais um sinal desesperado. Era evidente: queria que parassem. Paralisados pelo susto, o capitão e seus homens se debruçaram sobre a amurada do navio. O capitão se preparou: “caso ainda não fosse, ali o homem claramente tinha ficado louco”. Do bote suspenso pelas cordas, o Passageiro Basco olhou mais uma vez os marinheiros magros, barbados, e gritou várias palavras, as mesmas malditas palavras que sempre dizia no idioma desconhecido. Apontou o horizonte, diante das caras doentias da tripulação, e esticou os dedos, um de cada vez, várias vezes. Depois prosseguiu seu caminho: os cabos de aço se estendendo até o bote alcançar a água, o bote se perdendo na imensidão azul.
A tempestade durou quatro dias. O Fahyza suportou com tranquilidade o mau tempo, apesar da fraqueza dos marinheiros. Quando o céu clareou, corrigiram o curso para aproveitar a corrente: a sensação geral era de que o pior havia passado. Transcrições das comunicações pelo rádio revelam um moral em franca recuperação. A tripulação, talvez feliz, fez uma festa. Música, dança, discursos. Chamaram de “Baile dos Sobreviventes.”
A partir desse momento o diário de bordo perde completamente os sentidos cronológico e textual. Uma nota sem data informa que foi avistado outro bote no horizonte. Nada diz quanto à aproximação. Os instrumentos de comunicação foram totalmente desligados entre vinte e vinte e dois de abril, conforme registro do Posto de Contato. Outra nota diz que o Passageiro Basco tinha razão, afinal. Rabiscos completamente aleatórios preenchem a maior parte das páginas. Uma informação dispersa menciona um bote, mudança de curso e novamente o Passageiro Basco. “Impossível se livrar, o futuro é o presente massacrado pelo tempo”, é o último fragmento minimamente coerente.
Como informado no memorando anterior, o Fahyza foi encontrado na zona apontada no mapa anexo. O paradeiro da tripulação é desconhecido, mas não existe nenhuma indicação de pirataria ou motim no interior do navio. Tudo leva crer que eram bons marinheiros. Seguem as imagens.
Ponto importante. A carga permanece quase intacta no porão. Só dezenove botes foram subtraídos, prejuízo mínimo.