Conto: Sinestesia

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Rio de Janeiro, abril de 2013

Hoje eu cumpria o hábito de retornar. Passava pressionado pela multidão abafadiça e os planos incompletos, quando, no ninar das mansas vagas que se aderiam ao casco estorricado da balsa, um bando de gaivotas e trinta-réis surpreendeu-me com um inusitado balé de voos baixos e concêntricos, tal como cerdas retingindo o cenário crepuscular. Na hora me lembrei de você e da vez em que viajamos para Santiago. Logo na chegada, quando em frente ao hotel, tolamente fascinados pelos picos de gelo, de súbito um condor pousou sobre uma elevação a dois metros de distância, encarando-nos com seus olhos cristalinos, como se naquele momento a felicidade nos tornassem transparentes, quase neve.

Paris, agosto de 2010

… mas o que fazer com os imprevistos, quando o mundo decide se derramar, senão, mesmo com o tempo esgotado, encontrar uma distração, um livro que pego, como se agora tudo estivesse afogado, e escorre uma foto que aterrissa lentamente num antigo feriado, você descalça numa praia chuvosa, feliz e tentando me dizer algo, com uma onda de chumbo congelada atrás. Tento me lembrar das palavras, quando percebo, emoldurado na janela, um majestoso arco-íris que coroa o Sena encapelado de agosto, ah, esse ímpeto infantil! Esqueço a literatura e vou confrontá-lo, certificar-me que lá estão todos os matizes, mas sempre há você e a sensação de que nem todos os amores são coloridos…

São Paulo, setembro de 2011

– Não lhe passa pela cabeça que eu tenha um pouco de razão?
– Eu só acho que a sua reação foi exagerada. Poderia ter falado comigo antes.
– E como eu iria saber que era tudo brincadeira?
– Você é adulto. Presumo que saiba, ou não poderei socializar ao seu alcance.
– Isso me leva a crer que você deixou acontecer de propósito
– Mesmo que sim, caso fosse a minha intenção, não justifica o que aconteceu.
– Tá, concordo. Mas se você tivesse parado no começo da música, a nossa música, por sinal, a situação não tinha chegado aonde chegou. Agora ficou constrangedor também para mim, depois da cena patética na frente de todo mundo.
– Deus, como você foi chegar a esse ponto?
– O que posso dizer? Fiquei enciumado.
– Por quê?
– Eu te amo.
– O que há de errado com o seu amor?

Paris, fevereiro de 2009

<[email protected]> 14:35
Plune
Se eu me metesse a decifrar o que representas para mim
abanaria um livro de verbos que se espalhariam sobre a cama vazia
contorcendo-se feito insetos
que com patas de nanquim
saltariam sobre meu peito e
tomariam o lugar do órgão que bombeia o som da vida
escrito com repetição de um único nome.
DM.

<[email protected]> 16:11
Je pense à toi tous les jours. <3

São Paulo, novembro de 2012

Não, eu confesso que não, nunca acreditei que chegaríamos a esse momento. Mesmo que seja ingenuidade, achava que estaríamos imunes à adstringência do tempo, quando amantes tornam-se pessoas que se encontram para protagonizar o mesmo teatro de conformidades. Sei que nunca nos pusemos numa cápsula de placidez, mas, confesso, apesar dos acessos de raiva, das discussões que irrompiam por um tolo comentário, das amizades incomuns e da decisão de sair ou de ficar em casa, sempre apostei numa segurança que nos faríamos um homem e uma mulher cansados, olhando nossos filhos e os filhos dos nossos filhos feito pedaços que se arrancam e se moldam à perduração de um amor. Não aconteceu. No fim esbarramos.

Agora olho os móveis, que escolhemos juntos para confirmar uma semelhança de gosto, sem entender o motivo de empilharmos coisas que só tiveram vida no momento que as encontramos. Será que a luminária de palha de coqueiro tem o mesmo significado para você que para mim? Sinceramente, em pé no centro deste apartamento, não consigo determinar o que é meu e o que é seu. Quando duas pessoas, por um momento, começam a acreditar que são uma, as considerações são apenas exercícios para agradar quem você não é. Agora sou eu, um homem que contempla, através da moldura da janela, o céu turvo, dando-me conta de que esse é o cenário da nossa última foto.

Talvez o mais leal à nossa história seja que venhamos em dias diferentes para pegarmos nossas coisas. Cada um escolhe o que acha que lhe pertence, e assim fica decidida a partilha. Simples, como o movimento do adeus. Se o começo constituímos juntos, que o fim seja um ato particular.

Paris, dezembro de 2008

Ela parece sorrir para a gente.
Ela parece sorrir, contudo é apenas a insinuação de um sorriso.
Dizem que ela não tem os dentes da frente.
Da Vinci era egocêntrico o bastante para escolher uma modelo com explícita condição de feiura.
De todo modo, ela não é bonita.
A beleza é uma percepção. Está onde os olhos que veem querem que esteja.
Talvez na medida entre uma boina de lã e sapatos de flanela?
Há insinuações demais por aqui em torno de um simples sorriso.
É o sorriso mais enigmático da história.
(silencia)
Não acredita?
Da Vinci usou uma técnica chamada sfumato nesse quadro. Trata-se de aplicar repetidas demãos de verniz sobre a tela durante a criação da obra, para mascarar as pinceladas e constituir um gradiente de luz e sombra. Dizem que sob essas camadas há um grande enigma.
Não duvido.
Como soube que eu era brasileira?
Eu li suas anotações, por sobre seus ombros. É jornalista?
Não, faço pós-graduação em História da Arte.
Eu sou jornalista.
Escreve sobre arte?
Na verdade, não estou aqui a trabalho. Vim buscar inspiração para o romance que estou escrevendo.
E encontrou?
Acho que agora sim.
Esse é um enigma com o qual eu posso conviver.

Este conto é uma contribuição de Sérgio Tavares, jornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura” (Confraria do Vento/2012) e “Cavala” (Record/2010), com o qual conquistou o Prêmio Sesc Nacional de Literatura – Categoria Contos. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp-RJ/2005) e tem textos publicados em diversos jornais, sites e revistas.

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