Conto: Soldado Anônimo

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Conto_Soldado_Anonimo
Ilustração de Felipe Menegheti

 

Olhava à sua frente e parecia mirar-se num espelho. Mas não um espelho comum, este era de pedra habilmente esculpida e trazia sua imagem de dezenas de anos atrás, uma porta para o passado. O rosto na pedra não era o seu, na verdade não parecia com o de ninguém, e lembrava o de todos ao mesmo tempo. A imagem estava vestida com uniformes como aqueles que ele mesmo usava, tinha nas costas uma pesada mochila com suprimentos e portava o mesmo rifle que ceifou sabe-se lá quantas vidas.

O soldado anônimo viu-se na estátua de pedra, uma réplica exata do que era quando fora mandado à guerra na primeira vez. Mudou o ponto de apoio da bengala no chão, transferindo o peso do corpo. A perna ruim não era um fruto de seus anos avançados, mas sim de um projétil cuidadosamente alojado numa ligação importante de seu fêmur, que nunca recuperara da forma devida.

O soldado de pedra não tinha nenhum ferimento além das cicatrizes do tempo, esculpidas nos sulcos gastos aqui e ali em sua estrutura. O soldado anônimo questionou-se se sua imagem sentira a passagem do tempo assim como ele sentira a bala em seu corpo, ou da vez em que fora vítima de estilhaços de granada, felizmente sem grandes sequelas.

A chuva cobria os dois soldados, o de pedra parecia não se importar, e o real ajeitou o casaco para se proteger. O som dos pingos quebrando contra a calçada de mármore reavivaram sua memória, no entanto naquela época o barulho da chuva era contra o lamaçal. Era um som bem-vindo, pois significava uma breve pausa entre os tiros e bombardeios que rodeavam-no. Seu companheiro de pedra tinha sorte por ouvir apenas os pingos na calçada e o eventual som da cidade.

Também chovia quando perdeu um de seus melhores companheiros para uma bala que viajava sem rumo certo. Na hora do sangue quente largou o rifle e correu em auxílio do amigo ferido. Já não sabia mais dizer se a poça em seus pés era de mais água ou sangue. E foi ali, sem palavras bonitas, nem música de fundo, ou sequer um olhar ao horizonte; que outro soldado anônimo como ele tombou.

Naquela hora gostaria de ser como o soldado de pedra, vazio, sem emoções. Mas não, sentia-se novamente um menino de nove anos tendo de enfrentar o monstro do armário sozinho. Toda a honra e bravura de lutar por seu país e pelos ideais verdadeiros desapareceram num piscar de olhos. Enfrentara sua primeira morte naquele dia, e pensara que em qualquer instante seria sua vez. O soldado de pedra nunca saberia o que é passar por isso.

Riu-se. A estátua fora realmente erguida para representar seu amigo morto. Uma estátua, que nada sente, nada viu, e nada dirá. Enxugou os pingos de chuva do rosto para erguer bem a cabeça e encarar o rosto da escultura. Não havia na expressão vazia, assim como não havia nada na guerra. Para que lutou? Por que colocara a vida em risco? Por que morreram? Por que matou? Procurava no soldado de pedra as respostas para tormentos sentidos há décadas.

Parou de chover. E o que rolavam no rosto do soldado anônimo eram apenas lágrimas.

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