Conto: Sonho de uma noite cega

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HLVT
Ilustração de FP Rodrigues

 

Passa à sala seguinte. O cenário se repete. Cômodos hexagonais com paredes revestidas de madeira. Posicionadas em círculo, cinco cadeiras barrocas com almofadas vermelhas.

“A universidade inteira é assim, o universo é assim, feito de salas hexagonais”, informa um guia que ele não vê de onde saiu. Caminha à sua frente, se apoiando em uma bengala. Com longas pausas, o guia esclarece tudo a respeito da universidade, sem nunca olhar para ele. Em instantes, conhece todo o lugar. Se torna um estudante da instituição, um fragmento daquela estrutura, um objeto escolhido por ela.

Falta apenas conhecer um cômodo, o salão principal.

Certo magnetismo o puxa para lá. Talvez sejam as palavras hipnóticas do velho que continua falando, embora seu discurso fique cada vez menos compreensível. Passa a usar outras línguas, falas antigas. Portas e salas hexagonais depois, o salão principal se revela. Ele sabe que só entrará ali uma vez. Não terá outra oportunidade de passar pela mesma experiência. “Nosso ritual de iniciação”, explica o guia.

Então ele entra. Escadas sobem pelas paredes do cômodo retangular, chegando a um ponto onde ultrapassam o teto. Percebe que os alunos não sobem pelas escadas, e sim suas projeções astrais. O absurdo da situação mostra uma lógica própria. Ao entrar no salão das escadas, uma projeção se forma, simulando a imagem do visitante. Iniciado o processo, o corpo fica olhando de baixo, enquanto sua projeção sobe. Não há escolha, Ao entrar no salão, seu segundo eu passa a galgar os degraus e as lembranças são cuspidas em sua mente. De uma vez só, retorna tudo que viveu. O cachorrinho que morreu, uma briga entre os pais, a primeira vez que viu o mar, o gosto de batida de abacaxi, o cheiro da primeira transa, cores, sensações, em um instante ele revê sua vida, revive com terror todas a suas memórias.

Continua subindo até a escada acabar em frente a uma porta.

A porta abre.

Seu guia surge segurando a bengala como uma espada. E quando ele percebe que o velho é cego, o homem grita “Rorschach” e o empurra. Susto, desequilíbrio, queda. No momento do impacto, ouve a gargalhada de Borges, reitor daquela universidade onírica, quem está no controle.

Seu corpo não se fere.

Agora sabe como as coisas funcionam. Está pronto para dormir.

 

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