Conto: Uma má ideia para qualquer um

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Ilustração de FP Rodrigues

O renomado Juiz Liseke, herdeiro de uma fortuna proveniente de uma patente de mangueiras de jardim, em outras épocas teria oposto a decisão da filha. Ele teria gritado:

– Você não pode se casar com esse homem miserável! – batendo com o punho no que estivesse mais próximo. – O que você pretende comer? Mármore?

Ele teria dito mármore pois J. M. Bobinski era escultor. Mas fazia tempo que o Sr. Liseke não gritava com a filha. Havia sofrido um derrame durante o julgamento de um homem acusado de perturbação da ordem pública por mostrar a genitália para um grupo de gansos em um parque municipal. Agora ele estava calmo como um camelo, e “camelo” era inclusive como a Sra. Liseke passou a chamar o marido pela forma como ruminava e precisava ser guiado pelos cômodos de sua desértica e enorme casa, que somente o dinheiro que nossa obsessão proverbial por uma grama mais verde poderia financiar. Durante o jantar em que Józef Bobinski foi apresentado a seu futuro sogro, o Sr. Liseke cuspiu em seu olho esquerdo.

– Ele faz isso com todo mundo, querido – justificou a Sra. Liseke, esfregando um pano no queixo redondo de seu excelentíssimo marido. – Eu tenho certeza de que ele gostou muito de você.

A Sra. Liseke não se importava mais com o que a filha iria comer, e lhes deu sua permissão. Então os dois correram até a sinagoga mais próxima e se casaram. J. M. Bobinski e Anja (agora também Bobinski) escolheram uma casa modesta para viver e logo tiveram dois filhos: o menino Janusz e a menina Zofia. Janusz e Zofia Bobinski seriam os responsáveis pela estátua falante da deusa Minerva, que a família Bobinski abrigava em seu sótão. Eles e um livro húngaro que o pai havia largado em seu escritório de porta de vidro jateado. Uma manhã, as duas crianças recitaram um trecho qualquer que para eles parecia uma fórmula mágica e a estátua simplesmente despertou.

Anja já tinha entretido toda categoria de figura ilustre na casa de seus pais, mas naquela manhã pela primeira vez era obrigada a fazer sala para uma deusa. E fazer sala em um sótão. Ela se lembrou de oferecer que sua visita se sentasse, mas sua visita ainda era um bloco de ardósia da cintura para baixo e não podia fazer tal coisa sem um esforço deselegante de sua parte.

– Você está me envergonhando em frente da estátua! – sussurrou Józef à mulher.

E se sua mulher fazia salas, o pobre Józef havia escolhido como profissão fazer estátuas, estátuas romanas de deuses e deusas. Seu estúdio, ficando no alto da casa, ele batizou de O Olimpo. E se armazenar toneladas de pedra na parte mais estruturalmente sensível de uma casa pode parecer uma má ideia para qualquer um, na cabeça de Józef fazia completo sentido que ficassem ali.

É uma verdade incontestável que a biologia das estátuas falantes é uma ciência fascinante que começou nos tempos remotos de Ovídio. Se tivessem um conhecimento básico da magnífica língua húngara saberiam que o livro que Janusz e Zofia tinham usado sem querer era um pequeno tratado intitulado “Lógica e Linguagem das Rochas Metamórficas & Pedras em Geral”, escrito por H. O. Heszlényi, místico e mineralogista. Dele teriam aprendido que pedras de escultura guardam dentro delas todas as suas estátuas possíveis. Assim, em estado apenas potencial, em estado bruto, dividem a consciência da pedra em fatias finíssimas, tão finas que, de início, essencialmente vivem nela como em um coma profundo. Heszlényi afirma que à medida que a pedra vai sendo dilapidada,

“certas estátuas deixam de ser uma possibilidade, pelo acréscimo de características que as descartam, e sua consciência é redistribuída entre as estátuas que permanecem no páreo. Isso acontece até que o último detalhe resolva a última ambiguidade e a estátua resultante assuma a consciência total da rocha. Antes disso, espera-se que a pedra animada apresente um comportamento esquizofrênico, ou, como é mais frequente, narcoléptico ou catatônico, antes de ser completada.” (pág. 254)

O que explicaria por que quanto mais Józef Bobinski se aproximava de concluir sua Minerva, menos tolerante e mais exigente e crítica das próprias formas e proporções ela ficava, tornando-se por fim a obra mais desgastante de todo o panteão e por pouco não sendo arremessada no quintal da altura de quase três andares. Tal reação certamente compreensível teria mudado completamente o rumo da vida de Józef e sua família, pois Minerva, mesmo confinada a uma base de granito, ainda era a filha de Júpiter, deusa do conhecimento e da estratégia e de tantos outros ministérios quanto nossa civilização ocidental em seu berço teve a lucidez de temer e delegar aos céus, tão mais fácil de culpar quando as coisas saem errado. Pois um dia, essa estátua fez as contas, e, acessando sua infinita sabedoria, lembrou-se que algo terrível ainda estava para acontecer. Seus gritos rudemente interromperam um café da manhã que se desenrolava até então diplomático:

– Vocês precisam fugir! Os alemães estão vindo!

Mas aquela era a última quinta-feira do mês, dia de visitar o avô de Janusz e Zofia que estava encarcerado na penitenciária estadual, o pai de Józef, engenheiro de solos aposentado e o ex-dono de um restaurante que com 27 dias de funcionamento serviu um goulash que hospitalizou 28 pessoas e matou 4. Era carne de rato! O avô Bobinski mais tarde confessaria aos poucos presentes no velório da mulher, que sozinha tinha comido 3 pratos de peste bubônica.

Ele apenas queria cortar gastos – mas por conta daquilo que seu advogado de defesa teria classificado como “um pequeno deslize” foi julgado e condenado pelo crime de envenenamento, e para quitar o arruinante valor de 31 indenizações simultâneas perdeu seu restaurante, que era também o primeiro andar de sua casa. A única coisa que seu filho conseguiu salvar enquanto desmontavam o lugar como formigas foram seus livros. Józef os empilhou por pena em seu pequeno escritório, e teria apostado uma séria quantia em dinheiro que ninguém encostaria seus dedos neles nunca mais enquanto vivesse.

Mas Józef e sua esposa, que não possuíam motivos para duvidar do ser sobrenatural que morava com eles de favor, começaram sem desespero preparativos para mudar-se para Paris. O plano era que primeiro fossem as crianças. Janusz e Zofia ficariam na casa de uma amiga da infância de Anja, que já morava na França. Ela estudava, dentre todos os instrumentos, o acordeão. O que garantia que era uma mulher também sobrenatural em sua tolerância. Quase chovia na tarde em que Anja e Józef assistiram a seus filhos pequenos embarcarem em um trem na plataforma improvisada da ainda não terminada estação Warszawa Główna. As malas eram grandes demais para eles. Em seus olhares de criança havia um brilho de orgulho. Vê-los partir fez com que Anja e Józef Bobinski se sentissem sozinhos pela primeira vez em 8 anos. Quase uma década! Uma felicidade que não sabiam que origem tinha tomou conta de seus corpos como o Espírito Santo, ou, no caso deles, como o ruach ha-kodesh:

– Graças a Deus, enfim eles se foram! – um disse para o outro. E foram para casa de braços entrelaçados.

Não puderam aproveitar sua solidão por muito tempo, pois na manhã seguinte as vigas de madeira da sua casa cederiam sob o peso das dúzias de estátuas em seu sótão, deixando órfãos Janusz e sua irmã. Por conta de uma incrível coincidência, no entanto, na manhã seguinte Varsóvia seria alvo de um bombardeio alemão nada tímido. A casa da família Bobinski foi tomada como apenas outra construção como os hospitais e mercados e escolas e estações de trem atingidos no início da invasão. A brigada de emergência do bairro, não tendo um fogo a que conter ou sobreviventes a resgatar na casa do desconhecido escultor, demorou menos de uma hora retirando os mortos dos escombros. Na confusão vigente, mostraram-se incapazes de diferenciar os pedaços de gente dos pedaços de estátua. O que se pensou serem as partes de 12 pessoas diferentes foi carregado em um caminhão até médicos que puderam fazer pouco pelo que sobrou, o que naquele dia resumia-se a brincar de uma espécie anatômica e particularmente triste de quebra-cabeças.

– Pelo menos morreram fazendo o que amavam – disse um cirurgião, limpando a fuligem da testa com um lenço e arrancando com um alicate as aristocráticas obturações de prata de Anja, que, ele pensou, não precisaria mais delas de agora em diante – agora que ela é só uma cabeça numa bandeja.

O marido da Sra. Gomolka, a empregada da família Bobinski, trabalhava como segurança noturno em uma fábrica de lâmpadas e lutava fazia também 8 anos com um problema de pedras nos rins. Pelo menos no papel, fazia parte da brigada do bairro da família Bobinski, embora o fizesse apenas pelo desconto na wódka do armazém. Tendo por toda sua vida sua cara esfregada na situação financeira dos patrões de sua esposa, assim que soube do desastre foi até o local ver o que conseguia resgatar. Voltou para casa triste e com um monte de livros. Mais tarde, tentando vendê-los, descobriria que teriam sido impressos e editados no leste europeu, mas que mesmo que não estivessem muito folheados ou rabiscados e com páginas faltando seu conteúdo não fazia falta a ninguém. Nos anos que viriam seriam vendidos pelo peso para serem usados como papel higiênico, um bem que rapidamente se tornaria escasso em todo território polonês.

– O que eu vou fazer com isso? Isso é inútil – repetia o Sr. Gomolka, enquanto carregava a pilha de livros em uma trouxa improvisada de um lençol enquanto levava suas luvas mordidas em seus dentes postiços.

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