Um dos pensamentos mais comuns associados à fruição estética de uma obra de arte afirma que ela existe para elevar o espírito e nos transformar em seres melhores. Nunca essa discussão foi tão necessária quanto nos dias em que vivemos, no momento em que as obras de arte sofrem valorações baseadas em questões subjetivas do espectador ao invés do seu conceito imanente para a sociedade. A arte diz mais sobre quem a enxerga do que dentro dos seus limites materiais, e é independente até mesmo da intenção do seu criador, valendo como um universo próprio em que ela é o seu centro e, ao mesmo tempo, a sua nêmese. Ainda assim, abundam vontades de distinguir uma arte “nobre” de outra que conspurca os espíritos, uma discussão tão antiga que dá a impressão de não estarmos avançando, mas retrocedendo.
É uma grande presunção imaginar que a obra de arte existe para despertar sensações positivas. Nada nos assegura que um livro, uma pintura, uma música ou uma dança não possa abrir as portas dos mais profundos abismos que moram dentro de alguém, portas que deveriam permanecer fechadas. É essa questão de fundo que transforma a leitura de Contraforte (2017), do autor gaúcho Rudinei Kopp, em uma experiência capaz de fascinar e, na mesma medida, inquietar: o quanto uma obra de arte é capaz de despertar demônios, ao invés de trazer à tona o melhor dos seres humanos.
Qualquer leitor que hoje ingresse em uma livraria irá se deparar com um desafio quase intransponível: encontrar um livro de verdade. Não essas obras de capas chamativas, não esses títulos pseudo-cultos que parecem emanar de uma propaganda, não esses autores badalados pela mídia e que escrevem – de forma insossa – sempre o mesmo texto com os seus problemas miúdos de classe média. Falo daquelas obras capazes de enlevar o espírito e nos fazer questionar, por trás de uma roupagem literária, certezas e dúvidas as quais sequer éramos capazes de verbalizar. Nesse cenário desolado, em que ideias são quase como árvores secas em meio a um deserto, pode até passar despercebido um livro que, por meio de uma construção literária bem realizada, escapa do superficialismo dos pensamentos ordinários e investe contra o moinho de vento das grandes questões existenciais. É possível que isso transforme a leitura de “Contraforte” em uma experiência singular: a sensação de que estamos lendo uma história enganosamente simples, mas que discute conceitos tão etéreos quanto a inquietação gerada pela Beleza, a utilidade de uma Obra de Arte e a diferença social ampliada pelo choque estético de uma obra artística.
No romance, o protagonista não-nomeado trabalha como segurança de um museu quando é surpreendido por uma performance artística: um homem que entra no local e desanda a vomitar algo vermelho que, no início, se assemelhava a sangue. A conduta omissiva do segurança diante do espetáculo – a sua não-interferência – acaba chamando a atenção de uma equipe de televisão. Em meio a uma entrevista, o protagonista resolve “incrementar” a sua fala, comentando outras obras de arte do museu em um tom confessional e simples, que acaba se transformando em um sucesso e gerando um programa na Internet.
Proveniente de um ambiente social pobre, acostumado a lidar com o horror da violência do cotidiano, o narrador-protagonista passa por uma pororoca interna: a exposição à beleza das obras de arte e a sua imersão no prazer estético por meio de falas que tentam sintetizar o conteúdo delas entra em confronto com a sua origem social humilde, com a figura de um pai ausente que lança sombras sobre a sua personalidade instável e com o desejo de ser amado (ou aceito). Esse acúmulo de pressão é acompanhado pelo leitor graças à narração em primeira pessoa, elegante e enxuta, sem histrionismos ou exageros. É possível reclamar – e perdoar – uma certa erudição presente no pensamento e na visão de mundo do narrador, incompatível com as suas condições pobres, mesmo ressalvado o fato de ele ter concluído cinco semestres do curso de Arquitetura, trabalhando no museu como espécie de um determinismo que nos condena a uma parte do substrato social desde que nascemos, circunstância que só aumenta o descontentamento interno do protagonista. No entanto, pelo crédito que todo leitor concede à voz narrativa apresentada pelo autor, tal discrepância entre discurso e condição social não causa maiores obstáculos ao texto.
No ensaio O que é Arte?, Leon Tolstói, após defender a ideia de contágio – a obra de arte genuína é aquela capaz de fazer com que artista e espectador, mesmo separados no tempo e no espaço, comunguem dos mesmos sentimentos -, diz que:
“o efeito da verdadeira obra de arte é abolir, na consciência do receptor, a distinção entre ele mesmo e o artista, mas, além disso, entre ele e todos os que percebem a mesma obra de arte. É essa libertação da pessoa de seu isolamento e de sua solidão que constitui a principal força atrativa e propriedade da arte.”
No caso de Contraforte, Rudinei Kopp leva isso ao limite: a solidão sentida pelo protagonista é exacerbada pelo contágio com obras de arte, que se misturam com a sua psique e acabam servindo de justificativa para o afloramento quase inevitável da maldade que dormitava no seu interior. O processo através do qual a obra de arte não explode em epifania e sim em terror é exemplificado pelo relacionamento do narrador com Ana, a repórter. Apaixonado pela mulher, ele tenta romper as camadas sociais que lhes separam e se depara com uma negativa que não só lhe inviabiliza a reciprocidade do sentimento, como lhe condena à solidão eterna e à impossibilidade de ascender socialmente. A cena final, em que a vida imita a arte que, por sua vez, imitava a vida, é emblemática para demonstrar a angústia de um protagonista para quem a arte não serviu como enlevo do espírito, mas como danação.
Outro mérito de Contraforte é a forma tradicional da estrutura, que emula a das melhores narrativas. Por vezes, a melhor invenção na hora de contar uma história é não tentar recriar a roda, mas simplesmente deixar a narrativa surgir à tona com naturalidade, sem eventos desconexos. O livro possui um início, um meio e um fim, e não existem digressões nesse percurso. Construído em torno de cenas muito bem exploradas, e apresentando personagens esféricos, caso do amigo bandido do protagonista, o Mão, “Contraforte” é um livro que ecoa na memória do leitor por muito tempo depois de acabar. Uma cena que se desenrola nos bastidores da trama principal dá a medida para a inquietação despertada pelo livro: no ônibus para o trabalho, o protagonista observa um passageiro, sentindo-se incomodado com a tatuagem que ele ostenta no pescoço, na forma de um beijo vermelho. A tatuagem lhe perturba por uma questão estética que não fica sequer explicada, mas é o ponto inicial para uma sucessão de atos premeditados com frieza e raiva desproporcional. A ideia de que a crueldade pode se originar não de um ato, que pressupõe uma equivalência (se alguém age assim, sofrerá a punição justa), mas sim de um mero desconforto impreciso é a medida do ser humano: somos regidos pelo caos e pela desordem, e uma pessoa pode morrer pelo simples fato de outra assim desejar.
Em todos os sentidos, Contraforte é um livro que rompe com uma série de paradigmas clássicos de narrativas (a mulher que se apaixona pelo diferente e pelo exotismo de um homem pobre; a classe C que ascende socialmente graças à sua alma sensível e à aceitação das elites; a obra de arte como abertura para o engrandecimento espiritual), e faz isso sem perder o controle narrativo e sem abusar na manipulação da forma. Mais do que tudo, porém, é um livro que se presta a uma discussão sobre as funções da arte e constitui uma investigação sobre as profundezas que se escondem dentro de cada um de nós. A Beleza pode ser não um bálsamo, mas uma maldição.