O Carandiru e o Drauzio Varella, quase todos os brasileiros conhecem. Mas e o livro sobre o complexo e o lado escritor do médico?
Quem liga a tevê no Fantástico todo domingo à noite – muitas vezes só para ser convencido, pela deprimente musiquinha, de que a segunda-feira realmente se aproxima – tem grandes chances de dar de cara com o médico Drauzio Varella. Figura onipresente nas reportagens médicas da Globo há anos, Drauzio fala de tudo um pouco: doenças cardiovasculares, respiratórias, ginecológicas, mentais, e por aí vai. É uma figura simpática, com ar sabido e carinha de vovô preocupado. Pois essa persona midiática conhecida pelo grande público esconde algumas das outras facetas do médico, como a do escritor, talvez desconhecida das gerações mais jovens.
Sua obra de maior repercussão foi Estação Carandiru. Publicada em 1999, vendeu cerca de 460 mil exemplares, números altíssimos para o nosso mercado editorial. Para coroar essa trajetória de sucesso, foi premiada com o Jabuti de não-ficção em 2000. Tudo isso, sem dúvida, por ser um texto de impacto. Drauzio apresenta em duzentas e poucas páginas parte de sua vivência de uma década como médico dentro do temido complexo do Carandiru, uma das cadeias mais conhecidas do Brasil. Em contato direto com os presos, ele descobre como funcionavam as coisas naquele lugar que, como declarou em uma entrevista, era “um intruso no meio da cidade”. Por meio de suas descrições, descobrimos como o complexo era organizado, como era feita a divisão dos presos entre os pavilhões, quais as regras oficiais (e extraoficiais) que vigoravam ali e quem eram os sujeitos que acabavam parando atrás das grades. Trata-se de uma realidade fascinante, dado que tão inacessível para a maior parte de nós, apesar de tão presente. Só pelo entendimento dela e de eventos ocorridos dentro daquela prisão, como o horrendo massacre de 1992, conhecido pelo mundo inteiro, o livro já vale a leitura. Em tempos de violência selvagem em presídios como o de Pedrinhas, no Maranhão, ele ainda é responsável por promover um interessante paralelo com a atual situação prisional do país, na qual pouco mudou e muito segue o mesmo curso de sempre.
A coragem do nosso cicerone ao circular por aquele espaço, aliás, merece um parágrafo à parte. Esqueça os parques bem cuidados e ambulatórios assépticos que Drauzio tem como cenário de suas reportagens televisivas. Vemos ali um médico atento, dedicado, cuidando de presos contaminados pelo HIV e por doenças de fácil contágio como a tuberculose. Seu ambiente de trabalho não passa de uma enfermaria sombria e úmida dentro do complexo prisional, no qual drenava abcessos sem anestesia porque o trâmite legal seria muito mais danoso para o doente do que a dor. No local, passava longas horas, pois os presos, vítimas de doenças ligadas a uma vida de drogas e sexo sem proteção, não paravam de bater a sua porta. Tudo isso, vale ressaltar, feito como trabalho voluntário. Pois, amigo leitor, você que se considera um ser bastante altruísta apenas porque deu ontem uma ajudinha mais polpuda para o mendigo do sinal ou comprou um brinquedinho para uma criança no Natal, eu faço um apelo… pense de novo. Perto do que Drauzio se propôs a fazer, poucos de nós teríamos muita coisa a exaltar nesse sentido. Seu trabalho foi notável, para dizer o mínimo, e certamente fez diferença na vida de diversos presos que encontrou pelo caminho.
O mais interessante é que, apesar de este ser um livro de não ficção, a forma como ele é escrito sugere uma veia literária em Drauzio – ou, ao menos, a de um bom contador de “causos”. Isso fica mais evidente quando a obra passa a focar nas pessoas que o médico conheceu, narrando os percalços pelos quais passaram até chegar ali. Então somos apresentados aos traidores, aos traídos, aos assassinos, aos arrependidos, e a toda uma gama de sujeitos que ganham ares de personagens, tão interessantes que são as suas histórias.
Drauzio faz questão de não glorificá-los ou minimizar os seus erros, que são graves, mas mostra com elegância o que há de humano neles, suas qualidades e seus defeitos. Isso confere ao texto um caráter literário e verdadeiro. Rimos com a sua desconfiança do preso de aspecto assustador que nada mais queria do que ajudar com os equipamentos do cinema – Drauzio exibia filmes de orientação contra o contágio de AIDS – e sentimos pelo sujeito que foi traído pelo melhor amigo. São histórias que carregam sentimentos com os quais conseguimos nos relacionar, e isso nos aproxima, mesmo que por alguns instantes, daqueles homens excluídos da sociedade.
É válido apontar que Drauzio, embora muito à vontade com a língua portuguesa, acaba caindo em um formato um tanto esquemático na sua apresentação dessas narrativas pessoais, utilizando os mesmos recursos linguísticos repetidas vezes. Mas isso é apenas um detalhe diante do resto da obra. Estação Carandiru é uma leitura agradável, na medida em que a dura temática permite, e absolutamente relevante a todos nós, brasileiros, para pensarmos que tipo de sociedade queremos construir no futuro do país e que papel as cadeias terão nela. Apesar das dúvidas que estas reflexões nos trazem, uma coisa é certa: depois de conhecer essa obra, o leitor nunca mais vai olhar para aquele senhorzinho sorridente das noites de domingo da mesma maneira.
Estação Carandiru
Drauzio Varella
Companhia das Letras