Uma adaptação teatral de Uma Criatura Dócil, de Doistoiévski

Em uma das salas do Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323) é encenada a peça DÓCIL 5:00 [versões por segundo], “livremente inspirada” em Um Criatura Dócil, de Dostoiévski. No palco, uma jovem – Giovana Tilieri – sentada à frente de uma mesa com um laptop. Além da cadeira e da mesa na qual ela está, há somente outras duas cadeiras para compor o cenário. Quase imperceptível ao espectador desatento, figura uma cortina translúcida entre a plateia e o palco. Ao fundo, vê-se a porta aberta de uma espécie de porão. Ouvem-se passos vindos de um nível inferior e a figura coxa e cambaleante de um homem – Fabio Chauh – sobe as escadas. Como Uma criatura Dócil é sempre comparado a Notas do Subsolo, proposital ou não, essa entrada é digna de nota. Ele, sem apresentar-se à plateia ou à moça, pede algo que substitua sua culpa. Ela oferece diversos antônimos para culpa. As falas descrevem o espaço no qual se dá a cena como uma loja que vende remédios para mentes revoltas. Ele diz não ter nada para oferecer, a não ser uma história e então dá início à narrativa.
“Imaginem um marido, em cuja casa, sobre a mesa, jaz a própria mulher suicida, que algumas horas antes atirou-se de uma janela.” Assim começa Uma Criatura Dócil, texto publicado em 1876 na revista literária Diário de um escritor. O narrador-personagem, sem nome, tenta compreender a morte da esposa, também sem nome. Sabemos que ele é dono de uma loja de penhores, um usurário. Seu objetivo é justificar a um grupo de interlocutores desconhecidos as razões do suicídio da moça, muito mais jovem que ele. Tentando eximir-se da culpa que o corrói, apresenta uma relação entre um homem e uma mulher pautada pela humilhação e miséria moral, polvilhada de pequenos ardis sádicos de ambos os lados. Nunca fisicamente violento, mas psicologicamente devastador se dá o caminhar Dele em direção à maldade e o Dela em direção à janela.
O texto de DÓCIL 5:00 [versões por segundo] oferece à plateia um panorama dos eventos que constroem a doentia relação entre Ele e Ela, prezando pela proximidade com o “original”. A quase ausência de objetos cênicos é substituída pela presença marcante da luz (comandada pelo também diretor Rogério Rizzardi). Desse modo, os atores e o jogo de luzes modulam a narrativa, possibilitando transportes espaço-temporais. Para quem assiste, a sensação de proximidade com os acontecimentos é conquistada por meio dos olhares Dela e pelas luzes que fazem nossos olhos passearem pela cena.

Foi marcante para mim, a corporificação de elementos narrativos – e de uma leitura possível desses – que denunciam a percepção de uma certa topografia do texto de Dostoievski. Exemplo disso é o fato de a narração dos eventos ser compartilhada entre Ele e Ela. O texto original é narrado em primeira pessoa, de forma que chamar o dono da casa de penhores de Ele é na verdade uma simplificação do fato de que o texto é narrado por um Eu. A referência à obra de Victor Hugo, O último dia de um condenado, expõe já de início a dimensão da culpa e do julgamento. Esse julgamento demanda em termos formais um debate entre defesa e acusação, bem como a presença de “estenógrafo invisível” capaz de capturar toda a trama. Por vezes esse Eu narrador oferece um conjunto de orações que amenizam ou adensam o sofrimento dele: “É verdade também que ela já não tinha para onde ir”; “às vezes pessoas são mortas simplesmente porque alguém empunhou um revólver”; ou mesmo o motor principal do texto dramatúrgico – a suposição de que a chegada Dele cinco minutos antes teria impedido o suicídio Dela. Essas diferentes vozes que se confrontam na mente e no discurso do narrador são como camadas do texto, pequenos solavancos, que foram passados para a ação teatral por meio da construção de falas para Ela, que não é apenas sujeita às palavras Dele, mas também o julga, o acusa, o absolve, o tortura.
Quanto à transposição do texto para um contexto contemporâneo por meio de uma série de substituições – o laptop em cena; o adversário Dele como um capitão da polícia e não do exército; o outro pretendente Dela como um padeiro e não como vendeiro; o refúgio imaginado por Ele como a Praia em substituição à Bologne; o figurino dos atores, entre outros, parecem ter por objetivo mais evitar algum estranhamento por parte da plateia contemporânea do que expressar algo sobre o mundo atual, ou algo que o valha. Essa proposta soa bastante coerente com a obra de Dostoiévski, que valoriza mais as implicações psicológicas que os posicionamentos sociais. Há claramente algo de longevo nas construções psicológicas do texto, que sobrevive facilmente às transformações do tempo.
DÓCIL 5:00 [versões por segundo]
Temporada:
Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323)
Sábados e domingos, 17:00
Duração: 55 min.
Indicação: 14 anos
40 lugares
R$ 40 (meia R$ 20)
Reservas: [email protected]
Informações: Facebook.com/docilcinco
Sugestões de leitura:
Tolstói ou Dostoiévski? Texto de Fátima Bianchi
Diário de um escritor (Dnevnik pisatelya) e sua importância na obra de Dostoiévski (em inglês)