A publicação em 2002 de O invasor, de Marçal Aquino, revela como a literatura pode anteceder a realidade
Dois sócios de uma construtora recebem a proposta de fechar um contrato com o governo brasileiro. Ela vem de um colega que trabalha dentro de certo ministério. A oferta é tentadora: trata-se de uma licitação com cartas marcadas, em que não há risco de ficar de fora. O tal colega, claro, espera receber alguma coisa em troca, algum montante que compense o generoso favor. Afinal, é assim que o jogo funciona.
O leitor desavisado pode achar que o texto acima descreve qualquer um dos processos desbaratados pela Operação Lava Jato, a investigação criminal que vem sacudindo o Brasil. Mas a verdade é que se trata apenas de parte do enredo da novela “O Invasor”, publicada por Marçal Aquino em 2002.
A atualidade do tema surpreende (ou talvez nem tanto). Quem diria que um texto de treze anos retrataria tão bem as histórias que vemos hoje o tempo todo na televisão? O fato é que a boa literatura capta e trabalha com elementos da sua época reconhecíveis a um público amplo, como é o caso da corrupção nessa história. A parte triste é justamente constatar que, mesmo depois de mais de uma década, as mesmas práticas sórdidas continuam sendo encaradas pelos sujeitos envolvidos como comuns e parte natural do processo. Um retrato das promíscuas relações entre políticos e empresários no Brasil. Situação formada e aprimorada por décadas, às custas de um povo pouco educado que, por muito tempo, não soube como cobrar ou a quem recorrer.
Obviamente, se tudo corresse bem – como correu por tanto tempo com os envolvidos da vida real – não teríamos história. A graça é lidar com o fato de que, enquanto os dois sócios minoritários dessa construtora mostram-se ansiosos para dar prosseguimento à negociação, o sócio majoritário, responsável pela palavra final, não deseja se envolver com o tipo de esquema sujo apresentado. A solução encontrada por Ivan e Alaor, os engenheiros de ética duvidosa, é tão simples e brutal quanto a vida: contrata-se um matador de aluguel com o objetivo de tirar do caminho Estevão, fundador da empresa e atual empecilho para sua prosperidade.
Dado o seu histórico no jornalismo policial, Marçal Aquino traz ao leitor um texto ágil, gostoso de ler, com capítulos curtos, diálogos sem rodeios e uma movimentação rápida dos acontecimentos. Mesmo com tudo isso, a psicologia dos personagens centrais nunca é rasa a ponto de parecerem caricaturais. Alaor possivelmente é um pouco menos explorado, mas trabalhado o suficiente para entendermos suas motivações e desejos. O fato de ser dono de um bordel diz muito sobre seu gosto por dinheiro, pelos caminhos proibidos e pelos atalhos encarados como necessidade ao ganho pessoal. Porém, é em Ivan que a maior complexidade surge, principalmente quando se estabelece nele um embate interno entre a busca por ascensão social e o seu custo moral. A partir de certo ponto da obra, encontramos verdadeiros momentos dostoievskianos na mente desse protagonista, desesperado pelas decisões já tomadas, perturbado pela culpa que insiste em não deixá-lo em paz. Há uma sombra do escritor russo nessa história, uma lembrança do tormento de Raskolnikov, embora o cenário paulistano, que traz o bairro de Pinheiros, a Zona Leste e a Avenida 23 de Maio, entre outros pontos, nunca nos deixe perder a conexão com a realidade local.
No fim, fica a dúvida: a ambição desmedida escancarada pela narrativa, que leva a ações tão funestas, extrapola muito a vida real? Eis uma resposta intrigante e que certamente não cabe ao texto nos dar.