O livro-reportagem: da função social e outras mais no massacre de Corumbiara
O livro-reportagem, considerado um gênero literário e jornalístico, é uma forma de estender um assunto que logicamente não caberia numa matéria rotineira da mídia comum. O enredo amplo e geralmente problemático abraça a literatura e deste modo faz uma ligação com ela. Deriva do chamado jornalismo literário ou novo jornalismo e carrega consigo a diferenciação da arte. É o que comumente chamamos de literatura não-ficcional, que revela, sempre, uma nova visão da realidade.
Então esse gênero também é literatura? É literatura sim, senhor! E além da função dramática que se tem de cumprir, tem ainda a de se fazer sentir um pouco da justiça social. E é nesse sentido que o livro do jornalista João Peres se dá. Ele vem retratar um tabu regional que há anos tenta se encobrir dos debates. Contudo, muito além das discussões dos fatos, o que Corumbiara: Caso Enterrado faz é ressurgir as verdades afogadas. O próprio autor define essa situação na introdução da obra:
“A memória sobre o conflito de Corumbiara – ou massacre, ou batalha – desafia os pré-conceitos, e este livro terá cumprido seu propósito se levar o leitor a desafiar os seus. ‘A verdade tem três lados’, disse-me uma juíza no processo de apuração da história. Após tantos anos, tantos documentos, tantas conversas, sou obrigado a discordar em parte: a verdade tem pelo menos três lados”.
Mas afinal, você sabe que parte da história do nosso país é essa?
Corumbiara. Latitude 12° 57′ 43″ Sul e longitude 60° 53′ 12″ Oeste. Sul do estado de Rondônia. População estimada em 8.842 habitantes. Uma cidadela voltada ao agronegócio. No dia 9 de agosto de 1995 um conflito entre policiais e camponeses deixa oficialmente 12 mortos e inúmeros desaparecidos. Entretanto, o número real de mortes ultrapassa a casa da centena. O fato ficou conhecido como o ‘Massacre de Corumbiara’.
Um trecho da denúncia oferecida pelo Ministério Público Estadual do Estado de Rondônia tenta explicar o ocorrido:
“[…]
Consta do inquérito policial que em meados do mês de julho de 1995, houve uma grande invasão na Fazenda Santa Elina, município de Corumbiara, na Comarca de Colorado do Oeste.
Pequenos lavradores da região de Vitória da União, Cerejeiras, Corumbiara e adjacências, foram induzidos a fazerem esta invasão, pois ganhariam um pedaço de terra. Iludidos pelo alto poder de convencimento, aquelas humildes famílias de lavradores, beirando a miséria, reunidas, invadiram a Fazenda Santa Elina. Ao chegarem no local, perceberam, tarde demais, que foram enganadas e ludibriadas em sua boa fé. Em vez de irem para a labuta da terra em tarefas típicas, foram obrigadas a se despirem de seus documentos e todos os objetos pessoais, cavar trincheiras, fabricar armas caseiras, enfim preparar-se para uma verdadeira guerra, coisa que jamais imaginariam. Ao perceberem que foram enganadas quiseram retornar para suas residências, viram então que eram prisioneiras e mantidas em cárcere privado pela truculenta imposição dos “seguranças”.
Em cumprimento à ordem judicial para desocupação da área, foi destacado um contingente de 194 policiais militares, sob o comando do Tenente-Coronel José Ventura Pereira e do Capitão Vitório Regis Mena Mendes. Ao aproximarem-se do acampamento, houve reação por parte dos invasores que, às ordens e orientação dos líderes da invasão, passaram a atacar o contingente policial, desferindo contra os mesmos disparos de armas de fogo, bombas de fabricação caseira e rojões, quando então atingiram mortalmente as vítimas Tenente Rubens Fidélis Miranda e Soldado Ronaldo de Souza. Os policiais militares completamente descontrolados, após o rendimento dos invasores, extrapolaram suas funções e iniciaram uma sessão de espancamento, torturas, chegando à execução com tiros a “queima-roupa”.
Consta que os fazendeiros Antenor Duarte do Valle e José de Paula Monteiro, em solidariedade ao proprietário da fazenda invadida, introduziram seus “pistoleiros”, que fortemente armados, participaram do espancamentos aos presos. Os “pistoleiros”, chefiados pelo gerente, José de Paula Monteiro, retiraram a vítima Sérgio Rodrigues Gomes, do local e o colocaram no interior de um veículo Toyota, levando-o para um local distante aproximadamente 70Km, onde o executaram com três tiros à queima-roupa, na região da cabeça. […]”
Inúmeros pontos desconexos e um todo confuso: isso é o caso Corumbiara. ‘Não é uma verdade acabada. É uma tentativa de contar um capítulo importante de uma história mal contada: a do Brasil”, explica Peres em seu livro. O jornal El País também põe em dúvida as definições que se têm do ‘maior conflito agrário pós-ditadura no Brasil’:
“Um massacre de posseiros sem-terra nas mãos de Policiais Militares e pistoleiros, ou batalha entre uma tropa despreparada e emboscada por guerrilheiros munidos de rifles com mira telescópica? Mulheres sem-terra foram usadas como escudo-humano, ou apenas convocadas para negociar o final do conflito?”
A única verdade é que passados 20 anos desde a tragédia, somente uma pequena parte dessa longa história é realmente conhecida. São os segredos irremediáveis. Um misto de interesses governamentais e vários particulares. O autor explica esse silêncio numa matéria ao site Outras Palavras que foi também reproduzida no site do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra:
“Há dezenas de exemplos todas as semanas de como informações de interesse do cidadão são controladas como se fossem patrimônio privado. E há uma infinidade de casos obscuros em que forças privadas entendem que o Estado deve a elas submeter-se”.
No fim, o que realmente sabemos é que, naquele agosto sangrento de 1995, na memória dos rondonienses, um grande trecho da formação do estado ficou registrado como triste e injusto. Obviamente, este não foi o primeiro massacre num estado onde as infinitas disputas entre latifúndios e pequenos produtores já levaram embora milhares de vidas. Todavia, o caso em específico traz à luz os berros silenciados da falta de limite e ordem quando o tópico é o campo. E é com dor que se tem de dizer que nossa história é suja de sangue.
Corumbiara: um caso enterrado, de João Peres, o corajoso
20 anos e uma ferida sendo arbitrariamente escondida. Por que? Relativização da culpa, excesso de poder e desmoralização da democracia. E o que é Corumbiara: Caso Enterrado no meio disso tudo? Uma promessa de desmitificar o acontecido e falar do que não se pode. É a coragem jornalística com uma pitada de técnica literária.
É por isso que o livro tem uma parcialidade incomum. Importantíssimo ressaltar que a narração gira em torna de Claudemir Gilberto Ramos, um dos réus condenados no caso e que encontra-se, portanto, ‘foragido’. Desse modo, o relato começa por ele, faz pontos de encontro com suas ações no ocorrido e finaliza-se nele. Porém, essa característica não faz com que o leitor perca informações novas e curiosidades que mudam aqui e acolá o sentido dos fatos.
Há ainda, sobrevoando todas as informações, a tese principal e essencial a ser dita e debatida: a reforma agrária. Uma questão de esquerda? Direita? Ou de todos? Seja lá de qual lado quem lê esteja, no final, declaradamente se pode afirmar que além de um ponto geral da sociedade, é um ponto atrasadíssimo no levante da bandeira no meio governamental. Além do ponto econômica, está posto a própria propriedade da vida e essa, como um direito natural, jamais deve ser perdida levianamente.
Ainda sobre a coragem de Peres, ela está no fato de que ele joga ao leitor, sem meios termos, um dos piores lados do estado, que mesmo com toda sua grandeza, beleza e importância nacional, é desprezada pelo restante do país. No fim das contas, Rondônia é uma criação tirada dos miolos do esquecimento e João Peres trabalha, literalmente, com o lado negro disso tudo. Ele diz:
“Antes de conhecer Rondônia, a primeira cena que me vinha à mente era a floresta. Densa, gigante, úmida, assustadora. Hoje, saltam na memória campos imensos, desolados, vazios, num fim de tarde, à espera da próxima safra de soja ou da libertação de uma boiada, colados na rodovia federal pela qual circulam caminhões ensandecidos, apressados para cortar o estado de ponta a ponta, desviando repentinamente de crateras surgidas no meio da pista, e raramente consertadas”.
Em seguida, continua:
“Nos últimos anos, Rondônia ganhou mais citações na imprensa nacional que ao longo de suas três décadas anteriores. A revolta dos trabalhadores das usinas de Jirau e Santo Antônio, em 2011, e a cheia inédita das águas do rio Madeira, em 2014, chamaram atenção. As histórias humanas, via de regra, foram porcamente contadas. As hidrelétricas-irmãs, situadas dentro de Porto Velho, são a confirmação de que, em cem anos, pouco se permitiu àquela região mudar seu papel na distribuição de funções dos estados. Jovem, Rondônia tem a herança de seus antepassados, marcada pela certeza de que serve como fornecedora de recursos naturais para o enriquecimento de outras paragens”.
Ainda na matéria do Outras Palavras, Peres faz um resumo dos líderes políticos rondonienses e suas ligações com a própria cultura agropecuarista. Ele cita o senador Valdir Raupp, que à época era governador do estado e que nunca se pronunciou sobre o caso. Hoje, além de carregar muito sangue em suas mãos, complementa sua biografia com acusações de recebimento de doações ilegais ao partido na investigação Lava Jato. João explica:
“Valdir Raupp de Matos, nascido em Santa Catarina há 60 anos, tem uma trajetória comum para um político de Rondônia. Via de regra, governadores são empresários com condições de se bancar ou profissionais liberais com ganas de serem bancados. Raupp é um pouco dos dois. Comerciante, mudou-se ao estado na época do boom populacional, no final da década de 1970, elegeu-se vereador em Cacoal pouco depois e chegou a prefeito de Rolim de Moura, na região central, em seguida.
O atual governador, Confúcio Moura, é médico e pecuarista. A família de Ivo Cassol, o antecessor, fez fortuna com madeira, gado e hidrelétricas. O senador Acir Gurgacz é dono da Eucatur, empresa que cresceu fazendo viagens do sul do país para Rondônia no momento da migração em massa. Amir Lando, ex-deputado e ex-ministro da Previdência, é advogado e dono de terras vizinhas à Santa Elina. O clã Donadon, recentemente abalado por denúncias de corrupção, cresceu no Cone Sul com atividades empresariais diversificadas. Estas são as linhas gerais da política local”.
Então, com tanta complicação, coube a Peres reorganizar as versões curiosamente incompletas. Versões essas nas quais duas são as principais: a dos militares e a dos posseiros. Uma ou outra, João também traz o ponto em comum dos dois recontos: um corpo jovem, inerte e frio chamado Vanessa. Uma vítima infantil da guerra. Sete anos e uma bala nas costas que roubou seu viver. É com uma enorme carga dramática que Peres nos faz sentir o que é a dor do desespero e a maldade humana em ação:
“Aí surgiram as luzinhas, no fundo. Era lá por três, quatro da manhã. Aproximando, aproximando, aproximando… pou, pou, pou. As balas arrebentaram tudo. Shuf, shuf, shuf. Bate nas lonas das barracas. Dá medo, muito medo. Até onde isso vai? Morrer assim, em vão, na miséria? Um minuto arrasta um século, uma noite que nunca acaba, um medo de morte que trava os músculos. A gritaria só piora. ‘Ai! Ai! Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!’. Nessa hora as pessoas não têm ideias muito variadas para colocar pra fora. Cada um sofre coletivamente e o coletivo não tem tempo de sofrer por cada um. Que se vire como dá. No breu dá para adivinhar de onde vêm os disparos. Faz um clarãozinho de pólvora. Mas é difícil saber onde foi parar a bala. Nem dá para tomar pé de quem ainda está ali, de quem morreu, de quem fugiu. De repente vêm as bombas de gás: fede, arde, arrebenta o nariz. As mães tentam colocar pano com vinagre para tentar preservar as crianças. Elas fecham os olhinhos, ardidos, tossem, tentam aguentar. Parece que o dia está clareando. Clareando! Vai acabar. Por Deus, vai acabar. Tem de acabar, meu deus. Acaba, meu deus, por favor: para! Tem dó de nós”.
E o final dessa história não é de se esconder ou pensar em fazê-lo: quanto mais se fala, mais viva fica as almas de quem se escondeu da vida. Das acusações, das condenações, das injustiças, da torpeza, dos mistérios. Gerardo Lazzari, fotógrafo da obra, traz à tona os sentimentos que insistem em nascer quando o nome Corumbiara é blasfemado. Lindas fotografias repletas de tristeza, completando fantasticamente o livro.
Definitivamente Corumbiara: Caso Enterrado é uma correlação ao hino da gleba. É um grito raivoso dos tensos conflitos e um reconhecimento da luta travada:
“O esforço e a bravura dessa gente
Que vive por grandes ideais
Somos todos um só povo
Que luta por justiça, amor e paz.
Nossos Rios são as veias que irrigam
Essa terra que garante a plantação
O futuro é o presente na vontade
De quem planta com amor no coração.
Salve a ideologia ancestral!”.