Crônica: A Pródiga Defensora dos Animais – Vilto Reis

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Em mais uma estranha tarde desta injustificável vida que escolhi, na opinião da maioria das pessoas que me conhece; estou no shopping do centro da cidade. No final do mesmo dia, tenho outro compromisso por aqui, não vale a pena ir para minha caverna provisória – o canto mais inóspito da biblioteca da universidade, já que escrever em casa é impossível diante das queridas interferências – para depois ter de voltar ao centro.

(Estar no shopping é contraditório, pois minha escolha de vida parte da renegociação do horário de trabalho, para apenas quatro horas, em vez de oito, deixando o período da tarde livre para minhas incursões pela escrita. Sim, muita gente neste momento me inveja por ter um tempo livre para o meu hobby. Acontece que não vejo como hobby, mas enxergo como minha profissão, meu objetivo, tornar-me escritor; em contrapartida, ando com poucos tostões nos bolsos, apenas algumas moedas para comprar cafés vagabundos em pequenos estabelecimentos do shopping, é o que faço neste momento, enquanto escrevo).

O fato é que de súbito sou surpreendido por uma amiga que não vejo há anos. Ela chega, duplamente, saltitante; é simpática, não nego, mas ultimamente ando com medo de pessoas muito felizes – na hora, lembro de um trecho do livro Sinuca Embaixo D’Água, de Carol Bensimon, em que um dos personagens, Bernardo, afirma que os porquinhos-da-índia só vivem dentro de gaiolas por não terem cérebros grandes o suficiente para estarem deprimidos com sua situação – minha amiga também não. Não é que eu seja antipático – algumas pessoas até me consideram um cara legal, por algum motivo que ainda me é obscuro -, mas, sinceramente, minha pródiga amiga não entraria na lista das pessoas que eu gostaria de me relacionar, não agora, pelo menos; diferente de quando eu tinha seis anos.

Ela – a amiga pródiga – veste uma camisa com estampas psicodélicas, que me deixam tonto – gosto tanto de cinza -, uma bermuda jeans do avesso, pois os bolsos estão para fora – sei que é moda, não acho absurdo, por incrível que pareça – e calça um destes All Stars prostituídos, com estampa inenarrável; além de carregar uma mochila jeans, salpicada de bótons dissonantes. O cabelo, entre o castanho e o ruivo, está solto; e os olhos esverdeados se escondem atrás dos óculos de armação preta e lentes grandes – a moda pop é ser nerd, infelizmente, dizem alguns nerds mais hipsters.

Depois da falsa-expressão-social-de-me-importo-com-você-ai-que-saudade – o que não se justifica, pois moramos desde sempre na mesma cidade -, convido-a para tomar um café, mais por hipocrisia do que por desejo de companhia; convenções sociais.

Pergunta o que estou fazendo aqui. Explico. Ela – a amiga pródiga – não me entende. Questiona se não sinto vergonha de estar me divertindo numa terça-feira à tarde, enquanto a maioria trabalha. Contenho-me, respondo que considero estar trabalhando quando escrevo. Ela sorri, sem graça. Faz tempo que não nos vemos e começamos mal. Pergunta-me o que faço para me divertir.

– Leio livros, às vezes viajo, tenho alguns projetos independentes na internet.

Demonstra não achar nada demais, embora não com palavras, mas com a expressão decepcionada. Devolvo a pergunta, sobre o que faz para se divertir.

– Participo de protestos, sabe; intervenções tanto no mundo virtual como aqui na realidade.

– Protestos?

Responde-me que em defesa dos animais, alguém precisa falar por eles, coitadinhos. Depois discorre sobre uma série de ocorrências onde eles – os animais – foram maltratados, ressaltando depois as conquistas que eles – a amiga pródiga e a ONG que ela participa – já conseguiram. O tempo passa e vou ficando enfadado de ouvir o discurso cheio de gírias repetitivas, palavrões como adjetivos de intensidade; e todos os inquestionáveis, segundo ela, argumentos sobre a necessidade de defendermos os animais.

O atendente do Café me concede um pedido de tempo, no momento exato em que vem até nossa mesa perguntar se queremos comer alguma coisa.

– Só mais um café para mim. Quer comer alguma coisa? – Pergunto à amiga pródiga.

Ela enrola um pouco, olhando o cardápio. Depois, responde.

– Um pastel de strognoff de carne, desse pequeno, e um chá gelado.

Não perco a chance.

– De carne? De animais, certo?

Ela não me entende, fica me olhando com olhos vagos. Tenho inveja do porquinho-da-índia, que não se deprime por não ter um cérebro grande o suficiente para enxergar as contradições do mundo.

Defenda os animais.

 

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