Crônica: Adeus para sempre e até logo ou algo assim – Vilto Reis

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Você desliga o despertador do celular 4h45min. Toma um café acompanhado de um pão com margarina, feitos no piloto automático. Realmente mastiga por mastigar como um equino sonâmbulo.

Às 5h15min engata a ré no Kadett, tendo que pela primeira vez na vida tirar o carro da garagem às cegas, pois as caixas da mudança, no banco de trás, cobrem completamente o vidro traseiro. Você não é o Luke Skywalker adentrando a Estrela da Morte, mas consegue, quase que por intuição.

Uma, duas, três ruas e você estaciona na frente da casa de seu amigo. As ruas do bairro periférico estão desertas como um feriado na lua. Logo que para o carro – freio de mão puxado, pé no freio e primeira engatada, para não correr –, ele vem no portão e diz que já está indo, só vai se despedir.

Neste dia, os dois estão no carro pela primeira, talvez, última, vez. Ele no banco do passageiro, carregando mais algumas bolsas no colo; e você no do motorista, perguntando se não ficou nada.

Vocês arrancam, conversando distraidamente, falando a respeito do cara que para no trevo sendo que a preferência é dele – sujeito idiota, ou faltou às aulas de matemática, e não sabe que o triângulo virado para ele outorga-lhe o direito primário nesta condição; ou matou as aulas de autoescola, dormindo de manhã cedo. Provavelmente nenhuma das duas coisas.

Chegam à rodoviária acompanhando o horário, 6h o ônibus dele sai de Blumenau para Balneário Camboriú, tomando outro então para o longe destino. Fazem conforme o combinado, ele vai buscar o carrinho enquanto você abre o porta-malas e começa a amontoar as caixas.

Descarregam. Você olha para o carrinho e se pergunta como alguém decide o que levar, o que não levar… Devaneia, nossos objetos são nossa vida, não, não são. Somos mais que isso, você sabe. Pois este seu amigo lhe ajudou a fixar este conceito.

5h50min. O ônibus dele encosta. Você se sente estranho. Ajuda ele a colocar as coisas na parte inferior do ônibus. Olha para ele e decididamente sente o estômago se atravessar, encolher, inflar, dar piruetas.

O desenho de que você se sente apenas sombra, começa a perder os traços. O nanquim vai se apagando, tornando-se rascunho; até finalmente chegar a folha branca.

Talvez o ser humano mais parecido diferente com você está indo embora. De Blumenau a Uruguaiana, mil e cem quilômetros de distância são bem diferentes de três ruas, como você está habituado há dois anos. Que dois corpos não possam ocupar o mesmo espaço, consegue aceitar, mas que eles fiquem tão longes, quando seus raciocínios sempre pareceram tão pertos, soa-lhe estranho. Pensar em corpos lembra-lhe que por ironia do destino, ou mero acaso – você acredita na primeira opção, seu amigo provavelmente na segunda –, conheceram-se num dia em que você estava no terminal de ônibus e lia o livro O Corpo Fala; naquele dia, seu amigo se aproximou e comentou que aquele livro era muito bom. Vocês se tornaram amigos; irmãos, na verdade.

Amigos, tenha poucos e bons. Pensa na frase que um dia lhe apareceu do nada, diferente da matéria, a quem esta habilidade não é concedida. Pensamentos estão acima da matéria. Deve ter aprendido isto com ele também, numa das discussões às três da tarde, num café, ou às cinco da manhã, numa praça qualquer.

Vocês se despedem. Trocam um abraço. Sem lágrimas. Sem lamentos. Apenas a certeza de que o outro está fazendo o que é melhor para ele, correndo atrás do sonho de se livrar de uma sociedade de consumo.

O ônibus arranca. Você vira as costas e vai em direção ao Kadett. É Segunda-feira e logo terá que ir ao trabalho.

Fica um sentimento atravessado.

Adeus para sempre e até logo ou algo assim. Você não sabe definir.

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