Crítico dos escritores de seu país, Bolaño fez uma obra polifônica que contraria acadêmicos
Wilson Alves-Bezerra
Os ventos do mercado editorial brasileiro prometem uma revoada de livros chilenos este mês de janeiro: As Agruras do Verdadeiro Tira – mais um inédito do inesgotável Roberto Bolaño (1953-2003) – será lançado pela Companhia das Letras. Virá acompanhado pelo relançamento de dois livros de José Donoso (1924-1996), um dos participantes do que se convencionou chamar de boom literário latino-americano dos anos 1960: O Lugar Sem Limites (1967), pela Cosac Naify, e O Obsceno Pássaro da Noite (1970), pela Benvirá.
A coincidência chilena certamente causaria graça a Bolaño, autor para quem o ser chileno sempre importou menos que a condição de exilado. Responsável por livros ambientados entre América e Europa, com uma verve realista que conjuga a volúpia pela enumeração, o impropério, a errância e a solidão do marginal, nada é mais estranho a seu universo que a nacionalidade. Até mesmo a linguagem de seus livros conjuga sintaxe e expressões da língua espanhola dos diversos lugares em que viveu. Jorge Luis Borges defendia que o patrimônio do escritor – argentino, no seu caso – era o universo. Bolaño reivindica para si esse legado, desde que da perspectiva de um exílio radical. Desde as primeiras linhas de As Agruras do Verdadeiro Tira, o narrador – a partir da voz de Padilla, um jovem estudante de Letras – satiriza, um a um, vários poetas do cânone ocidental dos últimos seis séculos: “Pablo Neruda, um poeta bichinha. William Blake era uma bichona, sem sombra de dúvida, e Octavio Paz era bichinha. Borges era afeminado, isto é, de improviso podia ser bichona e de improviso simplesmente ser assexuado”. E assim por muitas páginas ainda. Noutro momento, um grupo de acadêmicos, no aeroporto, discute se existem de fato os “países exóticos”. A vida universitária, a produção literária e todo o métier literário são motivos de provocação no livro.
Outra marca de Bolãno que As Agruras, reafirma é a dimensão inacabada de seus livros. Nunca se poderá esperar dele uma “obra-prima”, pois seus romances longos parecem seguir uma estética do interminável, como enuncia Alan Pauls em seu conto homônimo. O leitor habituado a Bolaño reencontrará personagens e histórias conhecidos: refiro-me a Amalfitano – o professor latino-americano presente na segunda parte do também póstumo2666 -, que é protagonista do novo livro. Em ambos os romances, trata-se da mudança do professor e sua filha de Barcelona para Santa Teresa, no México. Seria possível supor tratar-se de um episódio anterior àquele narrado em 2666; poderia inclusive haver a expectativa de que algo do livro anterior fosse explicado nesse.
Sim e não. Se se pode situar cronologicamente o início dos acontecimentos de 2666 em As Agruras, o que de fato se ilumina não é a história de Amalfitano, mas algo do processo de criação de Bolaño, ao se revelar uma reescrita ou escrita paralela em relação ao livro precedente. Na presente narrativa, Amalfitano não é professor de filosofia, mas de literatura; sua filha não é espanhola, mas argentina; a esposa não se chama Lola, mas Edith Liebermann, e está morta; a homossexualidade, que é o centro do relato de 2666, como questão perturbadora, ressurge como experiência tardia e concreta da vida de Amalfitano, exilado justamente por conta das relações íntimas com seus alunos da Universidade de Barcelona. A perturbação de 2666 dá lugar ao lirismo, na vida de um homem que se redescobre na meia-idade. Para o leitor, é o privilégio de visitar os arquivos do escritor, e vê-lo reconstruindo uma narrativa que já lhe é familiar. Não são histórias complementares, mas diversas.
Assim, o realismo de Bolaño mostra-se – como convém – procedimento de escrita, e não reconstrução de uma realidade que o antecede. É um mundo narrativo de personagens vivos e moventes, no qual, não por acaso, há estudantes de Letras, poetas, professores, editores e críticos. Há uma busca de mediação, embora não haja síntese. Conforme diz Amalfitano, de partida ao exílio, “como se nesses tempos de crise, em parte alguma um professor de literatura fosse necessário”.
Sobre José Donoso, disse Bolaño certa vez: “Dizer que ele é o melhor romancista chileno é insultá-lo. Não acho que Donoso pretendesse tão pouca coisa. Dizer que está entre os melhores romancistas de língua espanhola deste século seria um exagero.” Entretanto, Donoso, contemporâneo, amigo e leitor de Carlos Fuentes e García Márquez, tem uma técnica narrativa apurada, temas difíceis e em seu melhores momentos faz frente, sim, a seus contemporâneos.
O Lugar Sem Limites é um romance curto, publicado em 1967, mesmo ano em que foi lançado o best seller global Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Mas diferentemente do que acontece com Gabo, o livro de Donoso não tem aspirações à unanimidade. Exatamente o contrário, é um livro provisório, escrito ao longo de dois meses, no México, na casa de Carlos Fuentes, com a intenção de pagar uma dívida de mil dólares para uma editora chilena. Donoso estava em meio à dura tarefa de escrever O Obsceno Pássaro da Noite, havia alguns anos, sem conseguir terminá-lo. Decidiu expandir o argumento de uma página do longo romance para produzir esta obra.
O resultado foi bastante feliz. É uma narrativa contada por diferentes vozes, em um pequeno povoado decadente e interiorano, que logo deve ser dizimado para dar lugar a uma vinha. O núcleo narrativo é composto pelo travesti Manuela, sua filha Japonesinha, administradoras do prostíbulo da cidade, e por seus frequentadores: o velho senador Alejandro Cruz e o caminhoneiro Pancho Vega. Os cenários se limitam ao prostíbulo, o posto de gasolina e a casa do senador. O trunfo de Donoso é a ambivalência de seus personagens: Manuela teme a volta de Pancho Vega, o homem bruto que a agrediu no ano anterior e rasgou seu vestido vermelho de cigana; na iminência de reencontrá-lo, remenda o vestido e deseja o algoz. Seu protetor, o senador Alejandro, é o mesmo que anos atrás apostou com a prostituta Japonesa que ela não conseguiria excitar e fazer sexo com o travesti; se conseguisse, ganharia a casa em que funciona o prostíbulo. A narração do sexo público entre Manuela – o travesti misógino – e a Japonesa faz frente ao melhor Cortázar de Pescoço de Gatinho Preto e Anel de Moebius. A crueza do relato de Donoso o afasta em muito do universo intelectual e cosmopolita do livro de Bolaño, que sempre intercala sua violência crua com engenhosidades e reflexões.
O livro foi festejado pelo amigo Fuentes, que o impediu de vender a obra para quitar a dívida chilena e intermediou a publicação no México. O sucesso permitiu-lhe dedicar três anos mais a seu livro de maior fôlego e pretensão: O Obsceno Pássaro da Noite. Nele, estão presentes a violência, a misoginia e as ambivalências de O Lugar Sem Limites, porém potencializados e acompanhados da dimensão da loucura. Mudinho é narrador e também um personagem que escuta vozes e tem uma visão delirante – embora linear – da realidade. O relato começa numa Casa de Exercícios Espirituais, onde estão abrigadas idosas, freiras e órfãs, para o velório da velha Brígida. Sendo o narrador um louco, há uma espécie de continuidade entre os diálogos corriqueiros e alguns desdobramentos em que sexo e violência se fazem presentes, num ambiente em que o ideário católico está acostumado a ver apenas placidez. A própria Brígida – recém-morta – reaparece entre as velhas, sem mais; e o Mudinho se autodenomina também ele idosa, feto e Gigante. Não há uma instância ordenadora e prevalece a indeterminação. Ler O Obsceno Pássaro da Noiteé empreender uma incursão num universo de perturbação, em que sexo, luto, velhice, infância e religião conjugam-se de modo cru.
Na revoada chilena neste verão brasileiro, nenhum condor, nenhum Canto Geral, nenhum nacionalismo. Antes o desatino, o desarraigo e a sexualidade perturbadora. Felizmente para o leitor.
WILSON ALVES-BEZERRA É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA UFSCAR, TRADUTOR E AUTOR DE DA CLÍNICA DO DESEJO A SUA ESCRITA (MERCADO DE LETRAS/FAPESP)
Publicado originalmente no Estadão.