Pelo título desta crônica, já posso até ver os professores de redação ou escritores conceituados me advertindo: “Não se põe ponto de interrogação em título! Confunde o leitor e dá a impressão que você não tem propriedade sobre o texto e blá blá blá”, conceitos que vou ter que responder com um pesaroso “Deixem minha interrogação em paz, porque este texto é mesmo para provocar”.
Mantendo o clima de sala de aula que está se construindo e tentando chegar logo ao ponto para que os leitores não tenham que se ocupar demais por aqui, peço-lhes que me acompanhem a uma noite bem rotineira do ano passado, enquanto tinha uma aula de marketing e comunicação em que o professor falava de um curso que estava fazendo que pretendia tornar os participantes mais sensíveis ao que havia em volta deles, já que a rotina pode acabar fazendo com que os dias passem despercebidos.
Em certo ponto de seu discurso, disse que provavelmente nenhum de nós tinha prestado atenção no caminho que fizemos até a universidade, já que a rotina tem essa capacidade de nos desligar do que estamos habituados a ver e que o tempo parecia passar bem mais rápido quando estávamos em um caminho que fazemos todos os dias.
Sem vontade alguma de dar uma resposta, já que se trata de um professor a quem não tenho empatia alguma, guardei seu comentário com muito desprazer, já que poucas vezes ouvi uma mentira tão grande.
Os caminhos nunca são os mesmos. Se à minha frente não anda alguma outra pessoa, que dá os passos completamente diferentes dos meus e traz expressões mais distantes ainda, tenho ainda o chão, que carregado de imundícies ou só coberto de asfalto, traz sempre ideias bem interessantes. As crianças às vezes acreditam que o calor do asfalto não é causado pelo sol, e sim pela fúria do núcleo da Terra, que um dia provavelmente explodirá, encharcando a superfície com seu jorro. Se mesmo assim o asfalto não me valer muito, há a escuridão de um céu que pressagia uma chuva barulhenta e denunciadora, a que vemos se os casais da esquina se amam mesmo ou se um tomará o guarda chuva que cobre o outro. Se o céu estiver limpo, que as aves dancem acima das nossas cabeças, com corpos musculosos e asas bem curiosas. Asas que atiçam a ancestral vontade de voar. Se as aves forem pombos, sempre tão indesejáveis, que os seus andares e suas cores mescladas sejam observadas, porque há de se notar alguma beleza nos ratos do ar. Se mesmo assim o céu não estiver para peixe, você pode sacar o seu mp3, fazendo com que o caminho ganhe sua própria trilha sonora. Se a bateria estiver acabando, há sempre as observações maldosas a serem feitas. Se uma moça passar com uma blusa e saia de estampas diferentes, deixamos nossos diabinhos criticarem seu mau gosto. Se cairmos no chão, seja por descuido ou por punição das nossas injúrias, o formigamento nas mãos servirá de elemento comparativo ao de outras dores. Se estivermos suando, as pessoas nos oferecerão água gelada com toda disposição no próximo ambiente que pararmos. Se houver interdição no caminho, melhor ainda! Dar a volta pelo quarteirão pode ser uma experiência reveladora e agradável. Se atendentes das lojas que passamos forem sempre às mesmas, podemos supor em como levam as suas vidas, mesmo que estejamos completamente errados. Se as reflexões forem muito cansativas, podemos respirar fundo e pensar se a saúde está em dia. A conexão com o corpo faz com que a água ganhe um gosto incrível e que, em dias de muito calor, faz com que a vida seja recompensada só por aquele gole profundo e saboroso – sim, eu disse saboroso! – de água gelada em garrafinha de plástico, já que squeeze a deixa com um gosto forte.
Não vou mais me prolongar por todas as possibilidades de um só caminho, mas quero deixar claro que elas são muitas. Além de muitas, são únicas. Pensem em trajetos como experiências que dependem diretamente do nosso caráter e personalidade. Atravessar a rua é emocionante. Experimentar os caminhos é um exercício de sensibilidade barato, produtivo e muito inovador. Os caminhos não são transições, eles já são um acontecimento por si só, com toda relevância que lhes cabe. Os caminhos são as nossas intersecções com o mundo e também com os mundos das outras pessoas.
Lembrem-se que Flaubert transgrediu com a prática do romance ao adicionar uma visão delicada e real de seus personagens em seus caminhos. Que Dostoievski escreveu Crime e Castigo após suas análises de comportamento dos russos boêmios. Que Fernando Pessoa caminhava por horas em Lisboa antes de criar seus imortalizados poemas. Lembrem-se que a vida não precisa ser vista como pouca coisa.
Professor, o senhor me desculpe, mas dessa vez você estava muito errado!