Crônica: Uma confissão sincera ou sobre como cheguei a escrever um conto usando o Google Street View – Vilto Reis

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Então você tem vinte anos e está lá procurando uma história para escrever. Passou o último ano escrevendo contos curtos, mas relendo-os acha alguma coisa entre medíocre e do tipo que nem sua mãe gostaria ler (ela não gosta dessas coisas inventadas).

Você lê clássicos, brasileiros e internacionais; livros malvistos pela elite literária, como os gêneros: ficção científica, fantasia e de terror; e tudo o mais que cai em sua mão (inclusive aqueles de dicas (como escrever não sei o quê, etc).

Antes dos contos curtos, você tentou escrever um romance de fantasia medieval, ocorrendo no século II, na Irlanda. Detalhes a parte, você é um idiota, pois nunca foi à Irlanda, não sabe ler em inglês – enquanto uma trupe que você conhece, fala inglês fluente, embora não consiga articular dois pensamentos sobre si mesmo –; e ainda por cima, Hollywood divulga uma animação com o mesmo plot da sua história. Adeus, trilogia de escritor iniciante. O livro nunca passou das trinta e cinco páginas.

Mas como você é do tipo que constrói projetos com o material do fracasso, entra num novo romance, desta vez um futurístico, com situações emocionais de uma civilização pós-cataclísmica. Passa um ano escrevendo, revisando, repensando; e na última revisão, resolve cortar metade da história fora, pois acha melhor se ficar somente com um lado do enredo. Novas revisões e o que sobra são noventa e seis páginas de um romance cheio de clichês (como o órfão escolhido e o romance impossível); e acaba descobrindo que não é aquilo que deseja escrever.

Aí você olha para outro material que começou a escrever enquanto se desiludia com o romance futurista, são alguns contos mais longos, um pouco mais robustos, dez, doze páginas; e percebe que eles estão totalmente aliados com onde você quer chegar.

Você decide. Tem um novo projeto. Um livro de contos com histórias ambientadas em duas cidades fictícias.

Quatro contos já estão escritos, então você tem a ideia de escrever um em que o roteiro se baseia numa viagem a Porto Alegre, pois já aprendeu que sua vida é um ótimo material de apoio para as histórias. Contudo, você tem uma memória péssima, do tipo que ainda hoje (não mais com seis anos de idade) esquece o que foi comprar no mercado – sorte sua sempre ter morado na rua da escola, pois poderia ter esquecido o caminho de casa.

Só que a solução se apresenta num enviado da quinta dimensão virtual do Cyberolimpo – que é o Google, obviamente – ao lembrar-se que pode usar o Google Street View. Imagine o que é poder saber exatamente quantos quilômetros tem o trajeto, tempo de viagem, postos e restaurantes no caminho e uma foto interminável de tudo o que foi percorrido; é uma rememoração instantânea de todos os lugares que você passou; e isto dá uma nova orientação à sua história que se passa quase toda dentro de um carro.

Então no final, terminado o conto, você tem o prazer de olhar sua história no papel (sim, você imprime na última revisão), embora reflita no Diálogos, de Platão, quando este numa história afirma que a escrita era o fim da memória; logo, você se pergunta, e o que diria Platão sobre alguém que escreve com o Google Street View?

P.S. Depois de “platonizar” a coisa toda, você pede desculpa aos leitores pelo título quilométrico da crônica. Desculpem-me.

 

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