Sobre Macaquinhos, George Bataille e cus
Nos últimos dias, tenho acompanhado toda a discussão que cerca a performance Macaquinhos, parte da programação da 17ª Mostra Sesc Cariri de Culturas, em Juazeiro do Norte, no Ceará. Desde a quinta-feira passada, quando o vídeo da apresentação vazou nas redes sociais, a internet está em chamas. Não à toa a polêmica. Em Macaquinhos, o foco principal é a exploração do corpo. Mais precisamente, do ânus. Oito jovens cutucam, assopram e enfiam o dedo no cu um do outro.
Depois da dimensão que a treta tomou, o Sesc Cariri lançou uma nota sobre o espetáculo, alegando que atuou de forma a assegurar que o espetáculo apenas fosse divulgado ao público interessado, que não divulgou imagens etc. etc. A cada nova postagem, milhares de comentários brotam e as críticas vão desde o financiamento do governo de “tamanha baixaria” (fui pesquisar e não é bem assim, o governo não repassou grana pra peça diretamente, mas isso não vem ao caso) até o próprio sentido da arte contemporânea. É o caso de um vídeo famoso que anda circulando nas redes sociais, que passa de 130 mil compartilhamentos. Entre outras revoltas, a mulher questiona “Desde quando cu é arte?”. Para respondermos esta pergunta, precisamos voltar alguns passos. Ou melhor, alguns anos.
Em 1928, sob o pseudônimo de Lord Auch, George Bataille publica História do Olho. O romance conta a história do narrador, cujo nome não nos é dito, e de sua amiga Simone em meio a seus experimentos sexuais que envolvem, entre outros spoilers que não vou dar, a introdução de um ovo e de um olho de touro no cu. O livro, claro, não foi palatável no início. Bataille testemunhou apenas três edições de sua obra em vida. Duas delas clandestinas. 24 anos depois de concluída, apenas 833 exemplares da obra haviam sido impressos. Atualmente, História do Olho é um clássico. Mais que uma obra sobre o cu, o livro é uma viagem cheia de metáforas à infância de Bataille, filho de um pai cego, e discute a contradição entre o santo e o profano, a moral vigente na época e o limite da sexualidade. Reúne fãs como Yukio Mishima, Michel Foucault, Júlio Cortázar e, principalmente, Roland Barthes, autor de um artigo fodido sobre o livro, que pode ser encontrada na última reimpressão da Cosac Naify.
Segundo o Coletivo Macaquinhos, a performance, que existe desde 2010, é baseada no livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro (que também tem sua obra oprimida no país, apesar de não ter nada a ver com cu), “assumindo a pluralidade do ser brasileiro e trazendo a metáfora do hemisfério sul, representados pelos povos misturados de negro, índios e europeus, no corpo. Questionando a imponência do norte sobre o sul e a ficção criada do entendimento de que o que está em cima é mais importante do que está embaixo, paramos para olhar para o cu, aprender a ir para o cu e aprender com o cu.”
A arte é formada, dentre tantos elementos, por dois principais: estética e mensagem. Muitas vezes, algo incomoda. Ou a estética ou a mensagem. E não raro, as duas. Cabe a nós buscar discerni-las, associando uma à outra e amalgamá-las até que daí surja um significado legítimo que forneça substância para uma análise sincera. Somado a isso, há o fator transitoriedade e a transformação que a arte sofre para atendê-la. O tempo oxigena os símbolos e as representações, a arte se renova. Negar a contemporaneidade, daquilo que é, no caso, destruidor, orgânico e subversivo, é estar deslocado. Não no sentido elegante, mas no antipático. A arte contemporânea comunica a nossa sociedade, por isso dói tanto às vezes percebê-la, percebermo-nos. O pixo, o grafite, a performance são manifestações de todo o acúmulo de cotidianos e problemas que a gente de hoje enfrenta. Me arrisco a dizer que nunca fomos tão honestamente comunicados através da arte como agora.
Não vim comparar as duas coisas, Historia do Olho e Macaquinhos, embora também não queira diminuir a performance. Mas trago o alerta de que talvez estejamos focados demais no cu, limitando a investigação do significado da obra como um todo. No caso de Macaquinhos, realizada [a investigação] de maneira odiosa e mongoloide. A impressão que dá, feita por quem nunca entrou em um teatro e nunca se aprofundou de verdade em um objeto artístico. Ironicamente, coisa de quem geralmente só fica prestando atenção no cu dos outros.