A curiosa história do Agora-Leitor

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O Ainda-Não-Leitor caminhava pelo quarto, nervoso pelo encontro. Hoje mesmo vários amigos decidiram pegar em seu pé, pois ele confessou que não gostava de ler. Aliás, não é que ele não gostava de ler, apenas preferia fazer qualquer outra coisa a ter que encarar aquele objeto estranho.

Desde pequeno, o Ainda-Não-Leitor havia sido submetido a várias investidas a fim de que ele se transformasse num exímio leitor, mas ele não se deixava levar pela opinião alheia.

No útero de sua mãe, o Ainda-Não-Leitor foi submetido a provações literárias. Ouviu de tudo, desde Machado de Assis a autores modernos. Tinha dias que a mãe lia gibis, nesses dias ele dava chutes na barriga de sua progenitora. Gibis eram melhores de se ouvir.

Quando entrou na escola, a tia insistia para que deixasse os brinquedos de lado e se ocupasse com os livros fofinhos e “mega” coloridos. Sim, mal tinham palavras impressas, mas não dava para considerá-los brinquedos.

Ao iniciar o ano letivo no primeiro ano, o Ainda-Não-Leitor foi submetido a grandes pressões linguísticas e de torturas terríveis a fim de que ele começasse a ler por inteiro um livro.

A mãe e o pai não sabiam mais o que fazer, mas o ainda não Ainda-Não-Leitor não queria ler. E, dessa forma, aos trancos e barrancos, foi crescendo. Já na adolescência, os jogos eletrônicos mexiam com a cabeça do Ainda-Não-Leitor, mas as leituras obrigatórias acabavam com a sua paz e ele não dormia mais sem ter aqueles terríveis pesadelos ao qual ele se vi dentro de uma enorme biblioteca, rodeado por livros gigantescos e com a incumbência de lê-los para o vestibular.

Sim, o Ainda-Não-Leitor cresceu e teve que prestar vestibular. Não tinha outra opção senão abrir o livro, baixar a cabeça e dar o seu corpo e mente para o sacrifício literário. Mas tudo um dia acaba e o Ainda-Não-Leitor, ao ser aprovado para a faculdade de Matemática, vislumbrava um futuro pacífico e feliz, enfim estava livre das leituras.

Entretanto, junto com a faculdade, veio o primeiro amor e o Ainda-Não-Leitor se apaixonou, perdidamente, por uma linda moça que estava no terceiro semestre da mesma instituição de ensino. Era um amor que crescia em seu peito. O Ainda-Não-Leitor nem precisava dormir para sonhar com Eulália. Estava disposto a tudo para conquistá-la. Sabia que Eulália era uma das garotas mais “apreciadas” entre os seres masculinos daquela faculdade. Os garotos da Engenharia e da Medicina viviam atrás dela. Porém, ela não dava bola, era uma garota difícil de ser conquistada, diziam as vozes masculinas, mas o Ainda-Não-Leitor não era fácil de se deixar abater. Foi atrás de seu sonho. Ele estava decidido a fazer tudo, o possível e o impossível, por sua bela Eulália. Certo dia, o Ainda-Não-Leitor, enfim, conseguiu marcar um encontro com a garota difícil da faculdade. Marcaram em frente ao prédio da faculdade de Letras. O Ainda-Não-Leitor chegou esbaforido, mesmo estando adiantado, mas ele queria impressioná-la. Levou um ramalhete de flores do campo, tão coloridas e alegres como a sua Eulália.

No horário marcado surge, saindo do prédio de Letras a sua garota, trazendo consigo uma pilha de livros. O Ainda-Não-Leitor, envolvido em sua paixão cega, não havia percebido, mas como um golpe do destino, recebeu a notícia daquela voz rouca e alegre:

– Oi, você está aí há muito tempo? Desculpe se me atrasei, estava envolvida lá na biblioteca. Você sabe, faculdade de Letras requer muita leitura. Mas eu não me incomodo, afinal, ler é tudo para mim. Dou muito valor para pessoas que apreciam esse hábito. Por isso eu gostei de você logo de cara. Percebi que você é um rapaz legal e que gosta de ler.

– Eu? Gosto de ler? Como assim? – indagou o Ainda-Não-Leitor mais para si mesmo do que para a bela leitora, agarrando-se às flores como se elas fossem sua tábua de salvação.

– Ora, não sinta vergonha de ser um leitor. É triste de se ver os rapazes aqui da faculdade, todos fugindo das bibliotecas, como se fugissem de um monstro. São todos uns babacas. Agora, você não. Você merece a minha admiração por gostar de ler. São de homens como você que o país precisa para progredir.

– Mas como você chegou à conclusão de que eu sou um… Leitor? – indagou incrédulo.

– Mas tá na cara!

– Tá?!

– Ora, você está, todos os dias, pra lá e pra cá com esse livro do Machado de Assis embaixo do braço!

O Ainda-Não-Leitor olhou para as suas mãos. Numa estava o ramalhete de flores que ele ainda não havia dado à sua leitora e na outra, o exemplar antigo de Machado de Assis. Prometera à sua mãe, em seu leito de morte, que sempre levaria consigo aquele livro, para onde quer que ele fosse e todos os dias em que ele precisasse da ajuda da mãe e ela, estando onde estivesse, reconheceria nesse gesto, o seu pedido de ajuda. E, dessa forma, como ele queria conquistar a leitora, trazia consigo aquele exemplar antigo. Era a certeza de que a mãe o ajudaria.

Por fim, o Agora-Leitor e a Desde-Sempre-Leitora passaram a se encontrar em frente à Biblioteca Central da faculdade. Eles sentavam no gramado e liam juntos um capítulo de Machado de Assis.

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Cláudia de Villar é professora, escritora e oficineira. Formada em Letras pela FAPA/RS, especialista em Pedagogia Gestora e em Supervisão Escolar. A escritora tem alguns livros já publicados para o público infantojuvenil e adulto. Atua também como colunista de alguns jornais do RS (Jornal de Viamão e Jornal Floresta) e colabora com um texto mensal para o site Artistas Gaúchos. Desde agosto de 2013 é uma das associadas da AGES (Associação Gaúcha de Escritores). Cláudia afirma que é professora por opção profissional e escritora por vocação. Ler, escrever, criar e sonhar faz parte da composição de seu SER.

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