“Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar!”
Memórias do Subsolo, Dostoievski
Com epígrafe de Dostoievski, o assunto está posto. Como não lembrar de Memórias do Subsolo, quando se lê O Túnel, livro de estreia do argentino Ernesto Sabato, publicado em 1948?
Com texto absurdamente claro, porém com ideias complexas, O Túnel é uma travessia de solidão, paixão, posse e morte. Em Heterodoxia, Sabato fala a respeito da novela:
Minha ideia inicial era escrever um conto, o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir se comunicar com ninguém, nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura. Ao acompanhar o personagem, porém, constatei que ele se distanciava consideravelmente desse tema metafísico para descer a problemas quase triviais de sexo, ciúme e crimes.
Vamos, então, ao livro. Juan Pablo Castel, narrador-protagonista, no primeiro parágrafo da obra, declara ao leitor:
Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não serão necessárias maiores explicações sobre minha pessoa. (página 07)
A partir desse instante, o interlocutor já sabe do que trata a novela, mas desconhece os motivos que levaram o homem a cometer o crime. Conforme adentramos na história, é impossível largá-la. Sabato escreve com maestria as minúcias “demasiadamente humanas” das personagens. A força maior do romance está na construção psicológica do narrador. Na página 86, relata:
Em geral, essa sensação de estar só no mundo aparece mesclada a um orgulhoso sentimento de superioridade: desprezo os homens, acho que são sujos, feios, incapazes, ávidos, grosseiros, mesquinhos; minha solidão não me assusta, é quase olímpica.
A personalidade de Juan, em muito, nos remete ao homem subterrâneo de Dostoievski. No ensaio “Sempre Dostoievski”, o crítico Augusto Meyer escreve:
o homem subterrâneo é aquele mesmo demônio interior que o arrasta para ebriez da liberdade trágica, uma liberdade ao mesmo tempo criadora e destrutiva- criadora no sentido estético, mas terrivelmente desesperada e destrutiva em seu sentido mais profundo. (página 128)
É numa embriaguez que nos rendemos ao túnel que somos convidados a atravessar com o narrador. No “cruzamento”, vivemos os sentimentos de Castel; dos mais obscuros possíveis aos de míseros anseios de satisfação.
Além de nós, leitores, só mais uma pessoa pode acompanhar o pintor no túnel: María Iribarne. Antes de conhecê-la, o amargo artista sempre se posicionava diante da sociedade de maneira reclusa, descrente. Em companhia da mulher, a vida parece ter “respingos” de alegria, algum sentido e, talvez, o túnel tenha um ponto de chegada.
Escrevam-se os fatos: os dois se conheceram em Buenos Aires, no ano de 1946, na exposição de telas de Juan Pablo Castel. O modo que María observou sua tela intitulada “Maternidade”,f oi o suficiente para que o artista se apaixonasse por essa mulher, até então, desconhecida:
No Salão de Primavera de 1946 expus um quadro chamado Maternidade. Seguia a linha de muitos outros anteriores: como dizem os críticos em seu insuportável dialeto, era sólido, estava bem estruturado. Tinha, enfim, os atributos que esses charlatães encontram em minhas telas, incluindo ‘certa coisa profundamente intelectual’. Mas no alto, à esquerda, através de uma janelinha, via-se uma cena pequena e remota: uma praia solitária e uma mulher fitando o mar. Era uma mulher que olhava como se esperasse alguma coisa, talvez algum chamado fraco e longínquo. A cena sugeria, na minha opinião, uma solidão ansiosa e absoluta.Ninguém reparou na cena: todos passavam os olhos por ela como se fosse secundária, provavelmente decorativa. Com exceção de uma única pessoa, ninguém pareceu entender que aquela cena era essencial. Foi no dia da inauguração. Uma moça desconhecida ficou muito tempo diante de meu quadro sem dar importância, aparentemente, para a grande mulher em primeiro plano, a mulher que olhava o menino brincar. Em compensação, olhou fixamente a cena da janela, e enquanto o fazia tive certeza de que ela estava isolada do mundo inteiro: não viu nem ouviu as pessoas que passavam ou se detinham diante de minha tela.”(páginas 12- 13)
Chamo a atenção para dois pontos da citação acima: Juan Pablo identifica-se com a jovem desconhecida porque, tal qual o artista, ela parece viver nesta solidão absoluta; María Iribarne assemelha-se com a mulher da tela, que admira o mar em contemplação solitária.
A mulher surge como um simulacro do quadro, lembramos aqui do conceito de mimesis de Platão, escrito no Livro A República e, também, a conceituação de Aristóteles, presente na Poética. A denominação, para os dois filósofos, é diferente. Muito en passant, explico: segundo a doutrina Platônica, mimesis é uma “imitação das aparências”, uma figura ilusória; já na visão Aristotélica, é a “imitação das essências”. Aos olhos do pintor, María é a “mimesis Aristotélica” de seu quadro. Nesta parte, fica o velho questionamento: A vida imita a arte ou a arte imita a vida?
A cena de María, “transmutada” com a pintura, acompanhará o narrador até o final da história. Importante informar que os dois não se comunicam no dia da exposição, devido à extrema timidez do narrador. O leitor se deparará com a busca frenética de Juan Pablo pela moça. Tão insistente é a procura que, obviamente, Juan encontra a jovem e descobre que a admiração é recíproca. A relação amorosa inicia-se.
Mais adiante, é com espanto que narrador e leitor constatam que Senhorita Iribarne, monossilábica e misteriosa, na verdade, é Senhora Iribarne. Como diz o narrador: “Que abominável comédia é essa?”
Mesmo ante à revelação, o artista mantém seu relacionamento com a jovem, porque lhe parece impossível viver sem ela. Ao mesmo tempo que “ama”, Castel é assombrado pelo “monstro de olhos verdes”, só para lembrarmos daquele clássico Shakespeariano. O monstro, ou melhor, o ciúme domina a personalidade de Juan Pablo, que cria situações imaginárias, chegando a um ciúme às raias da insanidade. Sentencia:
Se algum dia eu desconfiar que você me enganou, dizia-lhe com raiva, mato você como a um cachorro.”(página 71)
O leitor, no decorrer da novela, acompanha todo o processo de desatino do narrador. Não suportando mais a rejeição, a suposta traição; o artista constata que se enganara, que María o iludira, que em nada a moça fazia parte de seu mundo:
[…] havia um só túnel, escuro e solitário: o meu, o túnel em que transcorrera minha infância, minha juventude, toda a minha vida. E num desses trechos transparentes do muro de pedra eu tinha visto essa moça e tinha pensado ingenuamente que ela vinha por outro túnel paralelo ao meu, quando na realidade pertencia ao vasto mundo, ao mundo sem limites dos que não vivem em túneis; e talvez tenha se aproximado por curiosidade de uma de minhas estranhas janelas e entrevira o espetáculo de minha inescapável solidão, ou tenha ficado intrigada com a linguagem muda, a chave de meu quadro. (página 143)
Juan Pablo Castel, em sua “consciência aguda de abandono”, encontra apenas uma solução: eliminar o que tanto lhe atormenta. Em cena anunciativa da morte de Iribarne, o artista destrói o quadro Maternidade:
Olhei-o pela última vez, senti que minha garganta se contraía dolorosamente, mas não vacilei: através de minhas lágrimas, vi confusamente como caía em pedaços aquela praia, aquela remota mulher ansiosa, aquela espera. Pisoteei os retalhos de tela e esfreguei-os até transformá-los em farrapos sujos. Agora, nunca mais teria resposta aquela espera insensata! Agora sabia mais do que nunca que aquela espera era completamente inútil! (página 138)
Juan elimina o quadro, elimina sua mentira. Se antes María era essência, agora é apenas aparência (mimesis platônica). Desesperado com tudo, com a humanidade, com o amor; Castel é a recusa de travessia do túnel, não quer encontrar a saída: é um condenado à escuridão. Parafraseando Sabato: Juan Pablo Castel permanece em seu túnel, com seus muros do inferno, cada dia mais herméticos.
O Túnel
Ernesto Sabato
Relógio D’água