Dançando na varanda: nossos limites existem, mas podem ser superados

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Dançando na varanda: nossos limites existem, mas podem ser superados

“Dançando na varanda” é um relato real sobre como nossos limites existem e como podem ser superados. 

Nicole Ayres, Autor em Homo Literatus
Nicole Ayres, foto divulgação

Não, esta resenha não será um louvor à superação dos limites ou à velha máxima que afirma que, desde que seja seu desejo, tudo poderá ser alcançado. O buraco é mais embaixo. Muito mais.

As pessoas e os países – o planeta, com os constantes desmatamentos? – vão adoecendo sem se aperceberem disso. A corda estica, a dor torna-se comum e, graças a um ambiente de trabalho nocivo, a um relacionamento tóxico, ao estresse acumulado, à violência urbana, a crises de autoestima, autocobranças, manias de perfeição, inseguranças ou a tudo isso junto, nós ultrapassamos nossos limites. Aí, descobrimos que eles existem.

Nicole Ayres, a autora de “Dançando na varanda”, é, segundo ela mesma, “mulher, carioca, sagitariana, yogini, professora de francês, escritora, amiga, filha, neta” – e um dia afundou-se em um bruto surto psicótico. O livro conta como isso aconteceu e é, segundo ela, o maior nude de sua vida. Adorei a definição, sobretudo por sua precisão e sua coragem.

A mente sob enfoque não romântico

Texto leve e bem-humorado, cheio de tiradas engraçadas e confissões “sem filtro” que servem para aliviar a tensão de um tema em que ninguém quer abordar com honestidade porque é pesado e cheio de “não me toques”: a doença mental.

Também é uma confissão corajosa que mostra os nuances da escuridão do mergulho no interior de uma pessoa cindida, fragmentada, em cacos (para a psicanálise, a psicose é a fragmentação do ego, o que significa espatifar você até não sobrar nenhum pedaço para contar a história).

Algumas cenas caberiam muito bem em um filme de terror, tamanho o descompasso que provocaram: descobri que nós, lá no nosso dentro, nos assemelhamos a uma casa mal-assombrada, pois contemos fantasmas insuspeitados, demônios invasores, correntes sendo arrastadas, luzes que se apagam, escuridão, estranheza – e medo, muito medo.

Dançando na varanda também mostra uma autora que domina bem o seu ofício, que entrega um texto bem construído e gostoso de ler, apesar das barras por que a narradora passa. Há um trecho que ilustra bastante bem essas “barras”: “O inferno não são os outros não. O inferno somos nós. Os outros são só espelho”.

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Dançando na varanda

Protagonizando a própria história

Em 21 dias de internação, ocasionada por uma série de “desmontes” em sua vida, aos 26 anos Nicole Ayres desabou. E precisou de ajuda para descobrir que só nos livramos da loucura quando a abraçamos, à semelhança, por exemplo de homens e mulheres, que só se tornam pais e mães quando olham para aquele ser de sua espécie e a magia acontece. Ou como um escritor, que só se sente escritor quando enfim digita “FIM” e salva o arquivo.

O mundo nos magoa, as pessoas nos magoam. Saímos machucados de um punhado de situações em nossa vida. Neste momento, ainda desprovidos do toque por conta de uma pandemia que não sabemos quando terminará ou de governos mal-intencionados, esses machucados seguidos custam mais a sarar.

É como o menino que arranca a casquinha do machucado do joelho e vê, entre maravilhado e assustado, o sangue voltar a brotar. Entretanto, nesse nosso mundo distópico, quem escreve sai ganhando, pois a ficção é mais “suave” que a realidade.

Os personagens sofrem por nós. Um enredo particularmente penoso não nos atinge diretamente. O problema começa quando o jogo vira e, como Nicole, nós nos transformamos, de autores, em personagens, em protagonistas de um drama: “viver só na teoria é viver pela metade”.

Não existe uma razão para a loucura. Mas há possibilidades. No caso de “Dançando na varanda”, os gatilhos mais poderosos ficaram por conta de um relacionamento frustrado e de um assalto, somados ao estresse acumulado de um mestrado e de um trabalho.

A primeira lâmina, zás!, faz você sair vazio de um relacionamento, sendo que o “outro lado” saiu como entrou. A segunda lâmina, zás!, a do assalto, faz você passar a ter mania de perseguição. A terceira lâmina, zás!, é a lâmina da ausência, como quando você liga para alguém que não atende e, depois do sétimo toque entra uma voz dizendo: “Ninguém em casa. Deixe seu recado ou tente novamente mais tarde”. E aconteceu assim: Nicole desabitou Nicole. Ninguém morava ali, só o vazio deixado por aquela lista de circunstâncias que a fez mergulhar no seu surto.

O nada

A parte seguinte é mais aterradora, porque você, em vez de mergulhar no vazio, mergulha no seu inferno, nos pesadelos e nas alucinações e vira um fantasma, um zumbi a naufragar no deserto de insanidade em que você se transformou.

A saída? Internação. 21 dias. Foi nesse processo que Nicole colou os cacos e aprendeu a auto-aceitação e a leveza.

Há ainda dois elementos que se repetem no livro e servem como contrapontos para o mundo assustador aonde Nicole mergulha, que são as letras de música e os agradecimentos.

Cada capítulo é encerrado com a letra de uma música que “combina” com o que foi contado antes. Um resumo? Talvez. Um contraponto poético? Talvez. Só sei que funcionou muito bem, por vezes aliviando a tensão de um capítulo particularmente pesado, outras aprofundando discussões.

O segundo contraponto que eu queria aqui tratar são os agradecimentos. Não aqueles que figuram no final ou no início de muitos livros por aí. “Dançando na varanda” até tem sua página de agradecimentos. Não esses. Falo de agradecimentos esparsos, espalhados pelo texto mesmo, à medida que as pessoas passam pela vida da narradora e de uma forma ou outra a auxiliam. Esses agradecimentos me chamaram a atenção porque temos dificuldade de agradecer.

Arremate

Quando saímos de uma situação particularmente difícil de nossas vidas, a tendência é desejar nunca mais passar por aquilo e, consequentemente, nunca mais pensar naquilo. O resultado disso é que muitas vezes somos desonestos com a nossa capacidade de ter gratidão. O ato da gratidão pode representar um passo atrás, revisitando um trauma ou uma crise e assumindo que fulano ou beltrana foi fundamental para que o passo à frente fosse dado.

Comecei este texto dizendo que não queria fazer um louvor à superação ou a qualquer termo que pudesse ser confundido com aquelas afirmações cheias de certezas dos livros de autoajuda, e agora reafirmo. Este livro é tão somente um relato de como uma pessoa saiu de um desabamento pessoal, mas não constitui manual ou protocolo que deva ser seguido por ninguém: o caminho foi de Nicole, e só a ela caberia contá-lo – daí o encanto do livro.

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha, tendo tido revisão de Evandro Konkel e edição de Mario Filipe Cavalcanti, Editor-chefe do Homo Literatus.

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