Barba ensopada de sangue surpreende com suas descrições minuciosas, com seu profundo trabalho de caracterização das personagens, tanto física quanto psicológica e com sua trama longa e lenta (longe de ser monótona), que contrasta com seus diálogos ágeis.
Daniel Galera é um nome que vem se consolidando no cenário da Literatura Brasileira. Nascido em São Paulo, mas criado em Porto Alegre, o escritor-tradutor ingressou na produção literária via Web, no fanzine Cardosoline e, também,em outros sites. Com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla (ilustrador), encabeçou um projeto que consistia em publicar, em impressão, os textos que escreviam. Assim nasceu a Editora Livros do Mal, que lançava títulos de autores novos e independentes. São publicações da série: Dentes Guardados, de Daniel Galera; Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari; Vidas Cegas, de Marcelo Benvenutti; Ou Clavículas, de Cristiano Baldi; Húmus, de Paulo Bullar; Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera e O livro das cousas que acontecem, de Daniel Pellizzari. Após essa experiência, Galera publicou Mãos de Cavalo; Cordilheira, Cachalote, em parceria com Rafael Coutinho e Barba ensopada de sangue.
O último livro de Galera, Barba ensopada de sangue, ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti e ganhou o prêmio São Paulo de Literatura em 2013. Sobre o obtido reconhecimento de sua mais recente publicação, em entrevista ao jornal ZH, em 30/11/2013, o escritor disse:
“Nunca ganhei muitos prêmios, na verdade. Até agora, a maior premiação havia sido o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, pelo Cordilheira. Depois tive dois terceiros lugares no Jabuti (em 2009 e 2013), o que é algo bem relativo, não é como ganhar o prêmio, embora seja importante. Mas, quando estou fazendo um livro, meu objetivo não é fazer com que ele seja premiável. Existem preocupações mais importantes.”
Daniel disse tudo. Em sua narrativa existem preocupações mais importantes, por isso mesmo seu texto é tão denso e complexo, prendendo o leitor à sua ficção de alta qualidade. Barba ensopada de sangue surpreende com suas descrições minuciosas, com seu profundo trabalho de caracterização das personagens, tanto física quanto psicológica e com sua trama longa e lenta (longe de ser monótona), que contrasta com seus diálogos ágeis.
O enredo é sobre um filho que perde o pai de maneira trágica e impactante, uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”. O pai chama o filho para conversar, os dois falam sobre o passado, sobre o misterioso assassinato do avô em Santa Catarina e, no fim do bate-papo, o homem diz ao seu menino que desistiu de viver, que irá se matar. Finda a conversa, pedindo ao filho que, após a sua morte, leve a cachorra Beta ao veterinário, para que se faça uma eutanásia. O pai, por amar muito o animal, alega não ter coragem de tomar tal atitude. Apenas sentia que sua Beta sofreria muito com seu desaparecimento. O filho fica em choque, não consegue acreditar naquelas palavras que saem da boca do homem . O pai fala:
“Tu pode deixar pra trás um filho, um irmão, um pai, com certeza uma mulher, há circunstâncias em que tudo isso é justificável, mas não tem o direito de deixar pra trás um cachorro depois de cuidar dele por um certo tempo… Os cachorros abdicam para sempre de parte do instinto pra viver com as pessoas e nunca mais podem recuperá-lo por completo. Um cachorro fiel é um animal aleijado. É um pacto que não pode ser desfeito por nós. O cachorro pode desfazê-lo, embora seja raro. Mas o homem não tem esse direito.” (p. 15)
Depois completa:
” Viver depois dos sessenta, pra quem teve uma vida como a minha, é uma questão de teimosia. Respeito quem investe nisso, mas não tô a fim. Fui feliz até uns dois anos atrás e agora quero ir embora. Quem acha errado que viva até o cem se quiser, desejo sucesso. Nada contra.” (p. 30)
O homem concretiza o ato. O filho, numa espécie de desepero, exílio e resgate, pega a cachorra Beta e sai de Porto Alegre rumo a Garopaba, em Santa Catarina. O jovem vai atrás da enigmática história de seu avô “Gaudério”. Até o fim do romance, todas as ações se passarão em Santa Catarina, tendo uma breve passagem pelo Paraná.
Chegando em Garopaba, o jovem aluga um apartamento, arruma um emprego de professor de natação, numa academia da cidade, e vai, aos poucos, se familiarizando com o lugar e as pessoas. O protagonista sofre de um problema que dificulta bastante a sua vida, ele não consegue reconhecer rostos, pois no parto sofrera uma grave lesão. Tal comprometimento, faz com que ele reconheça os outros de forma diferenciada, seja por um trejeito, por uma tatuagem, por um brinco… Na página 77 , lê-se:
“Eu não consigo reconhecer nenhum rosto. É uma doença neurológica… Não vou gravar. Meu cérebro não guarda o conjunto. Tenho uma lesão cerebral bem na parte que reconhece rostos humanos. Se tu sair de vista eu vou esquecer do teu rosto daqui a cinco minutos, ou dez, ou meia hora com muita sorte. É inevitável.”
Por suas andanças pela cidade, o nadador conhece Bonobo, um budista atípico, dono de uma pousada. É com esse amigo que o protagonista, um cara bem introspectivo, se abrirá mais sobre suas inúmeras inquietações. Conhece também a garçonete Dália, com quem se envolve rapidamente, mas sustenta um vínculo de amizade. Convive com dona Cecina, seus alunos de academia e com algumas mulheres com as quais desfrutará de aventuras passageiras ou experimentará um sentimento maior. Ao passo que vai interagindo no novo ambiente, o rapaz faz questão de se manter afastado de seu irmão Dante, da cunhada Vivi e da mãe. Responde brevemente aos telefonemas e mensagens de alguns amigos e, depois de um tempo, encerra qualquer tipo de comunicação via telefone e redes sociais com os parentes e antigos conhecidos.
Apesar de sua personalidade retraída e esquiva, o jovem sempre estará acompanhado pela cachorra Beta, uma parte de seu pai que resolve conservar. Mas, o protagonista tem um objetivo e não esquece nem um minuto dele: precisa saber sobre o paradeiro do avô. O jovem começa a questionar os habitantes mais antigos do local e constata que uma nuvem de suspense e silêncio se instaura quando toca no assunto. Para ele essa é uma questão de resgate, é uma questão de reconhecimento de parte de sua história. E é através dessa busca incessante que ele se envolverá em muitas aventuras e terá surpreendentes revelações.
Barba ensopada de sangue, ao contrário do que o título possa sugerir, é um livro sobre a natureza, dramas pessoais, relações frágeis e amores definitivos. A história fala, com delicadeza e pungência, da necessidade de “se perder”, para tentar encontrar parte do que se é; para tentar se reconhecer; fala de uma inevitável relação cíclica que se deixa de herança aos que virão…
Referência:
Galera, Daniel. Barba ensopada de sangue. Primeira edição. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.