De mim já nem se lembra: memórias sobre um irmão eternamente ausente

0
De mim já nem se lembra: memórias sobre um irmão eternamente ausente

De mim já nem se lembra, romance epistolar de Luiz Ruffato, fala sobre perdas, família e, ao mesmo tempo, sobre a sociedade brasileira

De mim já nem se lembra Luiz Ruffato
Luiz Ruffato, autor da obra De mim já nem se lembra | Foto: Regina de Grammont/RBA

De mim já nem se lembra traz em suas poucas páginas assuntos delicados e caros para muitos. São eles: a perda de um irmão querido e as memórias restantes sobre ele. Isso sem deixar de tocar em um assunto muito próprio da literatura de Luiz Ruffato que é a sociedade brasileira.

No livro, há alguns pontos curiosos. Nele, a realidade flerta com a ficção, o romance epistolar flerta com a autobiografia. Outra característica da literatura desse autor brasileiro é essa flexibilidade de gêneros literários e textuais em suas obras, o que é possível observar em Eles eram muitos cavalos, por exemplo.

O irmão

Após a morte da mãe, Luiz, ao adentrar o quarto onde a matriarca guardava suas coisas, encontra uma caixa de madeira, aparentemente ignorada. Lá estava o “coração enfrangalhado” (RUFFATO, 2016, p. 20) da mãe e um maço de cartas do irmão, cuidadosamente amarrado com barbante. Assim começa De mim já nem se lembra.

O irmão, José Célio, saiu de Minas Gerais e foi para São Paulo, porque lá havia uma firma contratando. Queria tentar uma nova vida, prosperar e crescer.  Ele agiu como muitos habitantes do país que vão para as grandes cidades em busca de uma vida melhor, distanciando-se de entes queridos e de suas origens.

O irmão voltou, sete anos depois, dentro de um caixão. O velório teve de ser com o caixão fechado. O acidente foi um desastre: o corpo desfigurado, o carro em ferragens contorcidas. Os pais, inconsolados, não achavam certo terem de enterrar o filho, tão jovem. A dor da perda causava indignação e já trazia muita saudade.

As cartas

De mim já nem lembra recupera a antiga tradição do romance epistolar. As cartas são  dispostas de modo cronológico, reconstituem o passado e apresentam memórias. Essas correspondências foram trocadas entre José Célio e sua mãe, enquanto ele vivia em São Paulo.

Mais do que simples notícias de um familiar, as cartas mostram uma família que lhe dava com a ausência e, consequentemente, com a saudade, imposta por quilômetros de distância. A ausência compreendida, apesar de tudo, pois José Célio buscava uma vida mais digna. Saiu de Cataguases e foi para São Paulo e Diadema. Sonhava em ter sua casa, seu carro, sua família. E esses sonhos pareciam possíveis, se trabalhasse bastante.

Ao mesmo tempo que derramam saudades, as cinquenta cartas apontam características de um Brasil em transição de uma economia agrícola para industrial. Mostram as mudanças também políticas, durante a ditatura militar no Brasil e também as mudanças culturais, decorrentes desse período.

A realidade flerta com a ficção

Ruffato de fato teve um irmão que se acidentou, assim como o irmão existente em De mim já nem se lembra. O irmão do escritor também foi embora de Cataguases para trabalhar e ter uma vida melhor. Também sofreu um acidente na estrada. O operário também trocou algumas cartas com sua mãe.

Numa mesa na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá), em 2017, o autor declarou que pessoas, indignadas, já o abordaram na rua dizendo que a história no livro está errada. Disseram que na verdade o irmão de Ruffato não morreu em um acidente. Alegam que ele foi vítima das atrocidades da ditadura, que mexeram no carro do irmão e que as histórias das pessoas no livro não são bem assim… entre outras coisas.

A verdade é que, conforme a explicação dada pelo escritor no início de romance, De mim já nem se lembra é uma tentativa “de reparar meus mortos, que já pensam no lado esquerdo: meu irmão, minha mãe, meu pai, aqueles aos quais me reunirei um dia. A eles, este livro” (RUFFATO, 2016, p. 22). No entanto, as cartas encontradas não necessariamente são reais. Os fatos expostos mergulham entre a realidade e a ficção, sem a obrigatoriedade que cumprir com a “verdade real” – e este é o barato da ficção.

 

Indicação de leitura:
Entrevista com Luiz Ruffato, sobre De mim já nem se lembra, publicada no jornal O Globo: ‘Cada romance é uma tentativa de reconstruir a História’, diz Ruffato.

Referência:
RUFFATO, Luiz. De mim já nem se lembra. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Não há posts para exibir