De quem são esses Rostos na Multidão?

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Dois personagens se entrelaçam e suas vozes parecem uma em Rostos na Multidão, romance da escritora mexicana Valeria Luiselli

Uma jovem mãe, um menino-médio, uma bebe, fantasmas e mais fantasmas. Esses são os pilares de Rostos na Multidão, da mexicana Valeria Luiselli. A narradora, jovem vivendo no México, está escrevendo um romance sobre sua vida em Nova Iorque, quando trabalhava em uma editora de livros, sempre a procura de títulos de autores hispânicos, prontos para serem traduzidos para o inglês. Sua vida se altera quando encontra Gilberto Owen (1904-1952), algo que se torna obsessão, e que vai tomando conta da narrativa. A protagonista leva a ideia de traduzir Owen, mas a proposta é recusada pelo editor. Não satisfeita, toma a iniciativa e falsifica manuscritos, tornando Owen mais atraente para uma publicação.

A maternidade é bastante presente no enredo, influenciando nos dilemas cotidianos da tradutora, ora brincando de esconde-esconde com os filhos, ora no casamento -que não anda tão bem das pernas- com o marido arquiteto, e por fim na busca incessante de inspiração para a construção de sua narrativa. A imagem do lar, do matrimonio recente contrasta a todo o momento com o fazer literário. Seu passado, uma espécie de boemia intelectual com os amigos Dakota e Mobby/Bobby , ambos despreocupados com o padrão de vida tido como o ideal, parece mais interessante. Viver é melhor que lembrar. Ele vendendo livros antigos em uma imprensa caseira. Ela cantando em bares e estações de metro.

Tanto a narradora, como o escritor se entrelaçam mais com o passar de cada página, a tal ponto que Owen ganha voz na história, e ambas as vozes parecem uma. Na segunda parte do livro (esta não é uma divisão estabelecida pela autora), o leitor tem o prazer de olhar os dois lados, o da jovem escritora e sua relação com a existência, e a do amargurado poeta.

Owen demonstra todo o seu lado complexo e triste na própria relação com a ex-mulher, metida a intelectual, e os filhos pequenos, pelos quais vai se distanciando com o passar dos parágrafos. Com seus amigos, outros boêmios literários, como Federico e seu fraco inglês, saem às noites a procura de se autoconhecerem. O escritor fala das relações sexuais com uma prostituta norueguesa, da teoria desenvolvida, em conjunto com Homer, sobre as mortes, segundo a qual as pessoas morrem muitas vezes e em cada morte soltam fantasmas.

“As pessoas morrem, deixam irresponsavelmente um fantasma de si mesmas por aí e depois continuam vivendo, original e fantasmas, cada um por sua conta.”

A dificuldade de conciliar os diversos papéis: escritora, mãe e esposa é bem construída ao longo do texto. Excertos como o que segue abaixo traduzem bem os obstáculos literários da mãe: 

“Agora escrevo à noite, quando as duas crianças estão dormindo e já é licito fumar, beber e deixar que entre as correntes de ar. Antes escrevia o tempo todo, a qualquer hora, pois meu corpo me pertencia. Minhas pernas eram longas, fortes e magras. Era próprio oferecê-las; a quem fosse à escritura. ”

E sem falar na esposa, a qual tem o marido como verdadeiro detetive ao tentar descobrir se as linhas do romance são verídicas ou não. Em suma, um importante olhar de uma escritora mulher com uma narradora mulher.

Rostos na multidão (Alfaguara, 2012)

Durante os diálogos nas partes de Owen, nota-se referências a outros autores, recurso comentado por Valéria na própria Flip (Festa Literária Internacional de Parati), parafraseando o que ela disse: os nomes dos autores funcionam como bolas e torna-se interessante ver como essas vão flutuar pela narrativa e ganhar pesos diferentes. Um exemplo dado pela própria escritora, ao escrever: Clarice Lispector tropeçou, o texto ganhará mais peso, atenção e até mesmo espanto para leitores brasileiros do que outro escritor mexicano desconhecido. Pode-se notar tal relação com nomes, não só de escritores em A história de meus dentes, livro dela recém-publicado no Brasil. Destaca-se também a parte final do livro, um excelente desfecho pra um personagem, comprovando a aglutinação entre Owen e a tradutora.

Rostos na Multidão concede outra superfície para a consciência, na medida em que se percebe nas próprias falas de Owen, a figura da jovem, como se os seus manuscritos e fantasmas ganhassem vida. Não se deve esquecer também , que o título original Los Ingrávidos, refere-se aqueles que não estão submetidos as leis da gravidade, leve, como os personagens do livro e seus fantasmas.

 

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