Sim, Nei Lisboa visita estrelas, lendas, profecias e muito mais. O músico não é somente um mestre em escrever letras cheias de romantismo, crítica, humor, ironia para belas canções. Nei, além de “poeta-cronista-cancionista”, sabe fazer ficção, e das boas!

O viajante do Cosmos tem 10 discos lançados e dois livros publicados: Um Morto Pula a Janela (ficção) e É Foch! (crônicas). Pra mim, seria um deleite citar suas músicas e falar sobre elas, mas, no momento, não ouso “desconstruir” tanta poesia para depois ficar me sentindo uma “estripadora lírica”. Nada me impede, porém, de comentar, en passant, sobre a novela que o bardo publicou lá pelas quadras de 1991. Cá lembrando e fazendo uma breve alusão, procurarei não desarmar algumas armadilhas da narrativa. Deixarei que os enigmas que entravam essa trama, sejam desarmados, com carinho, por um futuro leitor do romance.
Um Morto pula a Janela é uma novela policial de doze capítulos narrada em primeira pessoa. O enredo é sobre um jovem casal apaixonado: ele, um revisor de texto do jornal local e aspirante a escritor; ela, uma pintora com um futuro promissor. O dia a dia de ambos será balançado quando uma série de mistérios, provenientes de um passado ignorado pelos dois, vêm agitá-los no presente. Quanto a linguagem, o livro é bem acessível e tem muito humor, Nei presenteia o leitor com tiradas hilárias, o que torna a leitura ainda mais agradável. Outra informação interessante, quanto a estrutura do texto, é que em Um Morto pula a Janela há uma narração que se ergue paralelamente à história. Tais ocorrências surgem antes, no meio ou depois de alguns capítulos. Essas passagens retratam um momento mais particular do protagonista, são instantes em que o leitor tem mais contato com a subjetividade, as neuras e divagações do narrador.
Quanto aos outros personagens, que acompanham o casal nesse périplo investigativo, há o assassino ou assassinos, a vítima ou as vítimas, confidentes, amantes, o pai, a mãe, o terapeuta, isto é, as irmãs gêmeas Andreia e Adriana, Matias, Valter, Severo, Pablo, Senador, Clarisse, Hipólito Sirinho… todos residentes da pequena Ibiraí. É nesta cidadezinha litorânea que os jovens conviverão com essas pessoas e, também, com uma sucessão de segredos e crimes. Os protagonistas deverão pular uma janela para o passado para poderem desvendá-los.
A jovem Olívia, mais conhecida como Cherry, apaixonada pela paisagem do lugar e por barcos, trabalha freneticamente para expor uma série de telas a óleo chamada “Holandeses Voadores”. Enquanto isso, seu companheiro, o narrador, é promovido a colunista do jornal. Aparentemente, tudo começa a dar certo para os jovens. Quando Cherry termina suas pinturas, faz uma exposição no Iate Clube e sua vernissage é um sucesso. Olívia vende toda a série e é justamente a partir desse momento que incontáveis mistérios começam a surgir. Um único comprador desconhecido resolve arrematar as telas, inclusive uma que não faz parte da coleção, a moça se nega veementemente em vendê-la, até porque aquela obra não pertencia a ela, era de sua mãe.
Felizes e com dinheiro no bolso, o casal faz planos de viagens e coisas afins. Mas o fato de os quadros serem comprados por apenas uma pessoa e, ainda por cima, anônima, não passa despercebido pelo narrador. Tal ocorrência lhe parece estranha, mas ele deixa esse grilo cri-cri-cricrando apenas em seu ouvido. Para a pintora, tal atitude parece normal, mas só parece. Em casa, trabalhando na restauração da velha tela de sua mãe, Cherry percebe algo na pintura. Constata algum detalhe que não revela completamente para o companheiro. Apenas diz: “experimente cortar a árvore”. Na hora, as palavras ditas não são entendidas por seu parceiro, todavia ela não lhe dá maiores explicações, apenas o faz acompanhá-la até o Maxim’s, o bar do Valter, para esconder o quadro por lá.
Um dia, ao retornar de suas férias, sem a presença de Cherry em casa, o narrador finalmente entende o que a amada quis dizer quando restaurava a tela de sua mãe:
“Fui examinar o quadro de perto. Como pudera não perceber antes… O que me parecera apenas um borrão amarelo pintado pela mãe de Cherry, agora ganhava contornos familiares do costão sul, à direita, desbotado, figurativo, impreciso, mas absolutamente reconhecível. O que se pensara ser uma costa litorânea rajada e encardida pelo verniz, correndo logo abaixo da tela, não era mais do que a copa de um plátano, aquele plátano, amarelo de algum outono e desfigurado pelo tempo transcorrido desde que se pintara o quadro. O tempo em que a árvore crescera, até encobrir a paisagem da janela e nublar a evidência de que a tela fora pintada naquele apartamento, […]” (p. 51)
Para o espanto do narrador, a tela fora pintada, anos antes, no mesmo lugar que agora o casal residia. Por que desconheciam o fato? De volta de sua viagem, Cherry conta para o companheiro que a mãe lhe confidenciara, sem muitos detalhes, que morou no mesmo apartamento e que ali fizera aquela tela. Cherry o alugou através de Matias, que lhe oferecera por um preço acessível. Tal aposento pertencia a Plínio Jochlander, o senador, para quem Matias fazia alguns “trabalhos”. Cherry nada sabia sobre a identidade de seu pai, apenas estava a par que sua mãe engravidara de alguém da cidade. Na tentativa de desatar esse nó de marinheiro, os dois chegam a conclusão de que o anônimo que comprou a série de telas de Olívia, e que quis arrematar o quadro de sua mãe, seria o possível pai da moça. A jovem pintora vai além: ao observar a moldura do quadro, tem certeza que fora feita com a madeira de uma escuna de um antigo barco atracado no porto de Ibiraí.
Próxima ancorada? avistar de quem é o barco no porto. Entre um questionamento e outro, o casal descobre que a escuna pertence ao Senador Plínio Jochlander. Logo deduzem que Cherry é a filha bastarda do Senador e que o mesmo seja o provável comprador de suas telas, que tentara promover a carreira da filha sem comprometer sua imagem de homem público. Com a desculpa de se sentir rejeitada e até amedrontada, com a presença desse pai poderoso, Olívia diz, com um certo ar de mistério, que desaparecerá por uns tempos. A partir daí, o personagem-narrador, sem saber exatamente do paradeiro de sua amada, vai levando sua vidinha, até uma onda chacoalhar a calmaria e a solidão dos dias. O narrador, sentado no bar Maxim’s, é indagado por Matias, que surge transtornado. O homem queria saber sobre o paradeiro de Cherry. Para agravar a situação, Matias, logo em seguida, é assassinado:
“Matias apareceu como um relâmpago atropelando as cadeiras do Maxim’s, o rosto inchado, a mão trêmula sobre a mesa.
– Cadê a mocinha?… quanto ela quer?…
Não chegou a terminar a frase. Parecia ter visto um fantasma, mas era apenas um japonês saindo do banheiro. Empalideceu de repente e saiu do bar como tinha entrado, tropeçando nas mesas. […] No Tigresa, ontem, dormiu na mesa, e tentaram acordá-lo na hora de fechar o bar. Estava gelado. Durinho. E com uma ferroada de abelha no pescoço.” (p. 90-91)
Desconhecendo qualquer fato, o pior ainda estava por vir: o narrador descobre que Cherry havia deixado um bilhete com Andréia, sua melhor amiga, para entregar a Matias, que agora jazia. As perguntas que se esparramavam por seu pensamento eram: qual era o conteúdo do bilhete? Por que Matias estava morto? Olívia tinha algo a ver com esse homicídio? Questionamentos que o leitor também se faz. Sem a presença de Cherry, narrador e leitor parecem apenas ficar em marés de suposições, mas nunca em terra firme. Olívia/Cherry é fundamental na história, é através dela que outros segredos e mortes, que ocorrem na narrativa, serão solucionados.
Enquanto Olívia não retorna à narrativa, ficamos “boiando” por esse mar ficcional, vivenciando com o protagonista situações insólitas e misteriosas. Podemos quase concretizar uma relação edipiana, sermos perseguidos por um bando de japoneses; podemos passar por encontros fatais e presenciarmos mais assassinatos. Embarcamos em canoas furadas de suposições, mas o Sherlock Holmes de saias não nos deixa afundar. Na narrativa, Olívia/Cherry é nossa bússola, é nosso Norte; já sobre a criação da história, o Luis Fernando Verissimo disse tudo: “A surpresa não é que o Nei fez um livro diferente e inventivo como a sua música, e brincou com a linguagem e nos intrigou e nos fez dar risadas. A surpresa é que saiu e voltou no seu romance com a segurança de um velho marinheiro.” Como diz o Nei, naquela canção chamada Piratas do Capitão, “vamô abordá que dá”, porque no fim da história tem “festa no convés”.
Referência:
LISBOA, Nei Tejera. Um morto pula a janela. 3 edição. Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora, 1994.