Depois do fim – um novo autor machadiano

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O romance Depois do fim, de Alex Bezerra de Menezes (Simonsen, 2016), revela as mazelas de uma gente brasileira que conhecemos muito bem e que somos todos nós.

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Ele é especialista em Machado de Assis e também na biografia de Alexandre, o Grande.

Publicou o primeiro livro em 2005 e acaba de lançar seu mais novo romance. A verve machadiana de sua escrita chamou a atenção, inclusive, do historiador e professor Leandro Karnal, que prefaciou a nova obra.

Alex Bezerra de Menezes é o autor dessa narrativa, que possui uma trama fascinante ambientada em períodos presidenciais que abarcam desde Fernando Collor e o confisco da poupança até Luiz Inácio Lula da Silva e sua promessa “socialista”.

O romance Depois do fim revela as mazelas de uma gente brasileira que conhecemos muito bem e que somos todos nós. Faz-nos questionar se o Brasil de ontem é o Brasil de hoje, a intensidade com que somos manipulados e qual seria nosso preço diante da corrupção.

O próprio professor Karnal disse, na ocasião do lançamento, que estávamos presenciando o nascimento de um grande escritor brasileiro. Isso é o que, de fato, demostra o conteúdo que se saboreia por entre as páginas historicamente ambientadas de Collor a Lula e artisticamente ambientadas no mosaico literário da perenidade sem classificação, porque universal.

Resumo

A saga de um homem de meia-idade, professor universitário, na busca de uma herança perdida, no caso, uma obra de arte de autoria do artista holandês Franz Post, que veio ao Brasil no século XVII com uma caravana de outros artistas, cujo objetivo era retratar a colônia recém-descoberta. Essa obra de arte acaba sendo negociada por amigos e parentes antes mesmo de ser encontrada. No decorrer dessa busca, a personagem principal se depara com situações que, normalmente, não fazem parte de seu cotidiano e que vão causando uma série de transformações interiores nessa personagem. A experiência diante da morte é uma delas. O drama existencial diante da morte é ponto recorrente na narrativa.

Alguns aspectos que valeria ressaltar

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Depois do fim, de Alex Bezerra de Menezes (Simonsen, 2016)

Um estilo peculiar de escrita, contendo, do início ao fim, muitas metáforas, comparações e construções poéticas que conferem à obra um efeito sinestésico, muito embora o tom realista da narrativa. É relativamente comum entre os editores, ao lerem originais de obras que contêm muitas metáforas, pedirem para refazer, para diminuir. Isso porque o excesso de metáforas pode deixar a leitura cansativa e, por vezes, ininteligível. Mas não foi o caso desse livro, onde a abundância de metáforas é justamente o que dá a tônica e o ritmo da história, confere um encantamento à prosa que, por isso, tornara-se até uma prosa poética.

Talvez, a característica e estilo no qual foi escrito que mais remeta ao estilo machadiano seja a densidade psicológica das personagens. Todas elas são construídas de forma redonda, sobretudo o narrador-personagem, que tecendo o foco narrativo na perspectiva de ponto de vista, ou seja, tudo aquilo que sabemos dele próprio e das outras personagens são estritamente através do que ele diz, vão revelando, no decorrer da narrativa, as mudanças psicológicas e de estado de ânimo, sofrendo transformações evidentes ao compararmos essas personagens no início e ao final da história.

Há uma peculiaridade do narrador que também é traço machadiano: a maneira como ele expõe sua consciência, seus conflitos, seus dramas internos, sua forma de ver o mundo. Convida-nos a entrar nessa consciência até um dado momento em que desfrutamos de certa intimidade com esse narrador. E muito embora essas contradições e conflitos éticos, pela construção do relacionamento narrador X leitor, pela intimidade já formada, tendemos a não mais julgar os conflitos e os atos que provêm desse narrador. É o tipo de narrador que faz de nós, leitores, um joguete de seus argumentos e do cenário que ele apresenta. O narrador que nos intriga, que nos envolve, que nos retira a capacidade de qualquer juízo de valor ou de julgamento de sua pessoa. E aqui, lembro-me do conceito trabalhado por Zigmunt Bauman a esse respeito, quando ele diz que apenas julgamos e condenamos aquilo que não nos é familiar, porque quando conhecemos os meandros da história e os conflitos existenciais de alguém, lidamos com as contradições e impossibilidades desse alguém sem passar pelo viés do julgamento, da condenação e da exclusão.

Diante disso, poderia dizer que a obra inteira é machadiana, não fosse o traço peculiar já citado do autor com essa belíssima construção semântica e com essa habilidade potencializada de linguagem, isso sem falar no senso de humor e ironias que também são marcas fortes na obra.

A política como pano de fundo vem com pinceladas sutis para um leitor mais desatento, no entanto, é uma manobra política, e o desencadeamento de fatos das subsequentes “eras” governamentais que oferecem a condição que afeta diretamente a vida das principais personagens, assim como muitos brasileiros foram afetados na época do confisco da poupança, por exemplo. É bom lembrar da literatura como resultado de observação e experiência de um mundo diverso, em que política e sociedade podem e devem ser retratados para além do achatamento de um contexto unilateral ou polarizado. Em Depois do fim, o protagonismo é da sociedade brasileira, cujo foco narrativo são a minha e a sua consciência. Para além de debates inflamados e reduzidos, somos obrigados a nos deparar com cada construção cultural de nosso comportamento, que nos será lembrado por cada personagem da história, e convenhamos que nem sempre é fácil encarar que aquele “jeitinho brasileiro” de fato existe e que continua recebendo sua ração de sobrevivência. Do mesmo modo que não será fácil cairmos na conta das infinitas vezes que partimos com uma nau sem direção e que ao perguntar para onde iremos depois do fim, nem sempre obtemos respostas agradáveis e otimistas.

Porém, nem só de niilismo vive esse autor ou a resenhista que vos escreve. Realidade aqui pode significar o suprassumo da arte. A maneira como a realidade é observada pelo narrador, detalhista, tecendo descrições permeadas de metáforas, poderia conotar e classificar o texto como de escola naturalista-realista, mas o fato é que há um problema em classificar obras no contexto e na época em que elas são escritas. Uma obra só é devidamente classificada com a distância, o tempo é fundamental. De qualquer forma, é marcante a maneira como esse narrador observa e nos traduz a realidade que ele observa, prendendo-se a detalhes e elevando-os a uma epifania poética ou a um drama existencial.

Concluo a apresentação desse manual de sobrevivência no Brasil fazendo minhas as palavras de Machado de Assis quando do prefácio da obra Iracema, de José de Alencar: “Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo, e da meditação, escrito com sentimento e consciência. Quem o ler uma vez, voltará muitas mais a ele, para ouvir em linguagem animada e sentida, a história melancólica da virgem dos lábios de mel. Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro. É também um modelo para o cultivo da poesia americana, que, mercê de Deus há de avigorar-se com obras de tão superior quilate. Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu nome literário escreve-se hoje com letras cintilantes: Mãe, O Guarani, Diva, Lucíola, e tantas outras; o Brasil tem o direito de pedir-lhe que Iracema não seja o ponto final. Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima.”

São esses os meus votos para esse roteiro de almas brasileiras, para esse Depois do fim – que ele sobreviva ao tempo porque tem em si a plena fiança do futuro. Em verve machadiana mas para além, porque temos aqui o que Machado não teve tempo de ver, mas que não passou despercebido aos olhos desse artista semântico e construtor de metáforas. Se todo texto é intertexto, a conversa aqui teve a melhor das companhias. Enquanto conversavam Machado e Alex, queria eu ter servido o café.

REFERÊNCIAS

MENEZES, Alex Bezerra de. Depois do fim. Santos: Simonsen, 2016.

ASSIS, Machado de. José de Alencar: Iracema. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado originalmente na “Semana Literária”, seção do Diário do Rio de Janeiro, 23/01/1866.

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